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terça-feira, 1 de novembro de 2022

PESQUISA DE ADELAIDE ABREU-DOS-SANTOS - O SONHO DO REI JANAKA

O SONHO DO REI JANAKA

CONTO INDIANO/PANDIT SUDARSHANJEE

Uma vez, o rei Janaka, pai da princesa Sita, heroína do Ramayana, estava dormindo. Ele sonhou que o rei vizinho atacava seu reino e que acontecia uma guerra.

No sonho, ele foi capturado e o rei vitorioso lhe disse:

- Seu reino agora é meu. Ou ordeno que deixe agora o meu palácio

Janaka pensou: “quem vai-me ajudar agora?”

Ele saiu andando pelo palácio. Viu as portas das casas fechadas. Nenhum de seus antigos súditos lhe deu comida, pois tinham medo de ser decapitados pelo rei vitorioso, conhecido pela sua crueldade.

Depois de cinco dias andando sem se alimentar, chegou à fronteira do reino. Já fora do país, pediu comida numa casa. O dono da casa lhe disse que havia um banquete público acontecendo perto dali.

Contudo, quando ele chegou, a comida tinha acabado. Voltou para a casa do homem, que tampouco tinha como alimentá-lo. Mas lhe ofereceu um pouco de forragem de arroz com picles, a única coisa que pôde achar na casa. O rei comeu com vontade, e ficou feliz e aliviado.

Ao acordar do sonho, perguntou-se: “O que é verdade? O que vivi no sonho, ou o que estou vivendo agora?”

Seus assistentes ficaram preocupados, pois viam-no se perguntando o tempo todo: “isto é a verdade ou aquilo é a verdade?”

Resolveram chamar o sábio Yajnavalkya para que pudesse ajudá-lo. O sábio lhe disse:                                       

- Quando você estava comendo a forragem de arroz, este palácio era seu?

- Não! – respondeu o rei.

- E agora que tem este palácio, aquela penúria existe?

-- Não! – disse o rei Janaka

- Então – disse o sábio – nem isto que tem aqui era verdade no mundo do sonho, nem aquilo que parecia real no sonho é verdade no mundo da vigília.

Metaforicamente, este conto nos fala sobre a contradição que existe entre os três estados da consciência. Por exemplo, eu posso ser uma pessoa de condição social muito humilde, mas sonho que sou um imperador. Por outro lado, a agitação característica da vigília ou do sonho, é anulada, por sua vez, pelo pacífico estado do sono profundo. Ou seja, não há continuidade entre os três estados.

Sendo estados transitórios, nenhum deles pode ser o Ser, assim como já foi demonstrado que ele não é nenhum dos corpos ou camadas. Não obstante, o Ser permanece durante a vigília, o sono e o sonho. O Ser estava presente no sono, permaneceu presente durante o sonho e está presente no estado de vigília: você dorme, o Ser está presente; você acorda, o Ser ainda permanece. O Ser não vai embora quando você muda de estado de consciência.

A verdade sobre o Ser não muda, ela não é relativa, nem depende de condições externas. Nada pode entrar em contradição com ela, nem os estados de consciência, nem as experiências que temos neles, nem mais nada que possa depender do espaço-tempo. Resumindo, o Ser existe sempre, independentemente dos três estados de consciência.

Todas essas variedades de estados são dependentes do Ser e que elas não têm existência separada dele, que é ilimitado e eterno. Negando então todas as falsas identificações, superimposições e confusões, chegamos no conhecimento daquele Ser que é, foi e será. Existe uma conexão entre o fogo e a fumaça. Se houver fumaça, haverá fogo. Porém, não pode haver fumaça sem fogo. Similarmente, para que haja manifestação, nascimento e vida humana, a presença de Ser é necessária.

REI JANAKA E SUA FILHA

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

PESQUISA DE ADELAIDE ABREU-DOS-SANTOS - O QUE É MAYA?

O QUE É MAYA?

CONTO INDIANO
ANÓNIMO
PESQUISA ADELAIDE ABREU-DOS-SANTOS

       Certa vez, Narada (um grande sábio) disse a Krishna:
       - Senhor mostre-me Maya(ilusão cósmica)
      Alguns dias se passaram e Krishna convidou Narada para um passeio no deserto e, depois de andarem algumas milhas, Krishna disse:
      - Narada estou com sede, você pode trazer-me um pouco de água?
       - Partirei imediatamente, senhor, para buscar sua água.
       Assim Narada partiu.
      Não muito longe havia uma aldeia; entrou nela à procura de água e bateu numa porta, que foi aberta por uma linda mocinha. Ao vê-la, ele se esqueceu, imediatamente, que seu Mestre esperava pela água, talvez morrendo de sede.
     Esqueceu tudo e começou a conversar com a moça. Decorrido o dia toso, ele não voltou ao seu Mestre. No dia seguinte, lá estava ele de novo a conversar com a mocinha. A conversa transformou-se em amor; ele pediu a garota em casamento e eles se casaram e tiveram filhos. Passaram-se assim doze anos.
        Seu sogro faleceu e ele herdou sua propriedade. Vivia, como pensava, uma vida muito feliz com sua esposa e filhos, com seus campos e o gado e assim por diante. Então houve uma enchente. Certa noite, o rio encheu até transbordar e inundar toda a aldeia. As casas caíram, homens e animais foram arrastados e afogados e tudo flutuava na violência da torrente. Narada teve de fugir. Com uma das mãos segurava sua mulher e com a outra dois de seus filhos; o outro estava em seus ombros e ele tentava atravessar aquela tremenda inundação. Após dar alguns passos, viu que a corrente estava forte demais e a criança que estava em seus ombros caiu e foi carregada pelas águas. Narada soltou um grito de desespero. Ao tentar salvar a criança, largou uma das outras, que também se perdeu. Finalmente, sua mulher, que ele agarrara com toda sua força, foi arrebatada pela torrente e ele foi arremessado às margens, chorando e soluçando com amargas lamentações.
         Atrás dele surgiu uma voz delicada:
      - Meu filho onde está a água? Você foi procurar um bocado de água e estou esperando por você. Já faz meia-hora que você partiu.
       - Meia hora! - exclamou Narada. Doze anos tinham s.e passado em sua mente e todas essas cenas aconteceram em meia hora! É isto que é Maya
    
maya bay

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

ANÓNIMO - DHARMA: NADA NA VIDA ACONTECE POR ACASO CONTOS INDIANOS

DHARMA: NADA NA VIDA ACONTECE POR ACASO

CONTOS INDIANOS
        Contado numa sala de aula esta história, de um príncipe cujo pai, o rei, tinha um conselheiro, um sábio ancião que, de forma serena, sempre repetia a máxima de vida segundo a qual “tudo acontece para o melhor, nada acontece por acaso”.
       O príncipe cresceu ouvindo o jargão do ancião. Jovem e imediatista, achava que o sábio não tinha razão e que as coisas eram absolutamente casuais. Portanto, aquele conselheiro não tinha sabedoria alguma.              
    
       Certo dia o seu pai falece e ele assume o poder. Logo pensa em dispensar o conselheiro derrotista e conformista que só sabia repetir sua velha máxima.
        Um belo dia, o novo rei resolve ir caçar com seus homens e, junto com eles, levou o sábio. O novo rei pretendia, na primeira oportunidade em que o ancião repetisse o jargão, se livrar dele.
     Quando chegaram ao meio da floresta, uma ventania violenta toma conta e derruba um galho, que bate contra a testa do novo monarca, derrubando-o do cavalo, resultando num corte profundo na testa.
         Caído no chão, meio atordoado, e com todos em volta para acudí-lo, o rei se levanta e reclama: “Que absurdo, como pôde acontecer uma coisa dessas comigo? Machuquei me inutilmente!”.
           
        O sábio conselheiro chega perto dele e fala: “Não se preocupe. Tudo acontece para o melhor, nada é por acaso”.
     Indignado com o sábio, o rei ordenou a seus homens que cavassem um buraco, amarrassem o ancião e o deixassem para os chacais comerem. “Agora quero ver se ele vai achar que é para o melhor”, disse o novo rei.

       Ao ir embora, o novo rei se perde de sua comitiva na floresta e escuta de longe um murmúrio de vozes. Pensando serem seus homens, ele vai até os comandados e encontra um grupo de bandidos, que o aprisionam. Os ladrões estavam fazendo um culto a uma divindade e teriam que entregar um ser humano em sacrifício.
       Os bandidos levam o novo rei para o altar e, no momento de sacrificá-lo, percebem na testa dele um corte. Reclamam que, para servir de sacrifício à divindade, o ser humano deve estar íntegro fisicamente. Então o mandam embora, pois aquele homem não servia mais.
      No mesmo momento, o novo rei lembra-se da sabedoria do velho sábio e admite que o conselheiro tinha razão.
       Mais tarde, ao reencontrar seus homens, ele vai em busca do conselheiro, afirmando que cometera uma injustiça. Ao chegar ao poço, retira o sábio de lá e lhe pede desculpas, dizendo que a ferida o salvou.
       O velho disse: “É, aqueles bandidos que tentaram te matar passaram por aqui também. Só não conseguiram me achar pois eu estava dentro do buraco. Tudo acontece para o melhor, nada é por acaso... ”
FIM

sábado, 2 de janeiro de 2021

ANÔNIMO (CONTO PORTUGUÊS) - O HÓSPEDE

O Hóspede

Anônimo
[Trabalho final da Cadeira de Escrita Criativa,
orientada pelo
professor Henrique Manuel Pereira]

          A moradia era grande e luminosa como um palácio. Encontrava-se no meio de um grande jardim. O jardim rodeava a casa com carvalhos imponentes. Aqui e ali, canteiros às cores. À volta do jardim, um muro alto e espesso e um portão pesado, de ferro forjado, a proteger de mãos e olhares estranhos. Por cima das copas das árvores, por cima do telhado da casa, uma nuvem permanente acrescentava ao conjunto uma leve aura de mistério.
        Sabia-se que alguém morava ali porque à noite se acendia uma luz solitária. Ora no sótão da casa, ora num janelão grande que dava para o Sul. Por vezes, deixava-se adivinhar na sombra ondulada das cortinas. Nas raras vezes em que a casa era motivo de conversa dizia-se que ali morava um idoso. Ninguém sabia muito sobre ele. Nunca ninguém soubera muito sobre ele.
         Era o fim do dia. O manto escuro e frio da noite avançava sobre a cidade. Um homem parou ao portão. Não trazia nada com ele.
        -Engraçado! Isto faz-me lembrar alguma coisa! - pensou para si, enquanto repousava o olhar sobre a nuvem, o telhado e as águas furtadas em estilo clássico.
         Fez ressoar a campainha do portão com vigor. Esperou. Portas e janelas, nem pestanejar. A porta principal, pregada ao chão. Do jardim ecoou o silêncio húmido da noite. Apenas as folhas das árvores pareciam acordadas porque a brisa fria as afagava. De resto, tudo em pousio, a exigir silêncio. O homem deu o tempo necessário e interrompeu de novo a mudez do escuro. Parecia estar inquieto.
         Dentro, o dono da Casa dormitava na letargia da lareira. Acordou sobressaltado com tal chinfrineira. Fazia muito tempo que não ouvia tal ruído. Na verdade, nunca o tinha ouvido desde que chegara àquela casa. Pensava até que, em tempos, teria retirado a campainha do portão. O salto que deu na cadeira fê-lo sentir-se ridículo e irritou-se ainda mais.
              - Quem ousará perturbar-me?
          Foi num misto de raiva e curiosidade que avançou para a porta. Gritou para o outro lado com a voz ainda entaramelada:
             - Quem é?!
             - Sou eu - respondeu a Visita.
             - O que deseja?
             - Mandaram-me vir com urgência e eu vim.
       - Com urgência?! Nem com urgência, nem sem urgência. Deve-se ter enganado. Boa noite! - atalhou o Dono da Casa.
        O homem, ao portão, sentiu o frio, insidioso, a penetrar-lhe na roupa. Tinham-lhe pedido que ali fosse depressa e afinal tinha apontado mal a morada. Incomodado com o engano, afundou as mãos nos bolsos à procura do recado. "Rua da Ordem, nº111. MUITO URGENTE", dizia. Afastou-se do portão para confirmar a rua e, depois, o número.
            - Sim, confere. É aqui mesmo! O raio do velho!...
O homem não se conformou. Voltou a fazer a campaínha tocar.
           - Quem é?! - ouviu-se de novo, do outro lado.
          - Boa noite! Estou a falar com o senhor que vive aqui?
           - Sim, sou eu o dono da Casa!
        - Olhe: estive a ver e, de facto, foi daqui que me chamaram...
       - Tenho muita pena, mas oiça bem: eu não chamei ninguém. Não me incomode!
          - Mas… não estou a perc… !?
          O homem ficou desconcertado.
          - Isto não pode acabar assim. Não pode.
     Releu o recado, procurando justificação para tomar medidas mais ousadas, e começou a procurar modo de saltar o muro e chegar à casa. Não tardou muito até se ver a trepar os dois metros e meio com a ajuda de um contentor de lixo. Desajeitado, saltou para o topo do muro como um inexperiente a tentar montar um cavalo. Agarrou-se a umas ervas, como se fossem crinas, e puxou o corpo todo como pôde, esgravatando o muro com os pés. Foi já sentado nas alturas que descansou a observar o jardim

           Naquele preciso momento pareceu-lhe ver movimento no meio dos arbustos. O receio de cães correu-lhe o corpo num arrepio. Esfregou os olhos e redobrou a atenção: parecia não haver perigo. O salto para o chão foi amparado pelas folhas do Outono. O aroma que sentiu trouxe-lhe memórias das brincadeiras de infância.
          Aproximou-se da casa e começou a procurar modo de entrar. O velho era danado. Da rua, não se percebia tal parafernália de segurança, mas tinha grades por todo o lado. Algumas janelas estavam mesmo pregadas com tábuas de madeira. Seria talvez a casa mais difícil de assaltar de toda a cidade. Mas também a mais difícil de sair. O muro já estava ultrapassado, faltava agora o mais exigente. Esperava-o um velho entrincheirado lá dentro. Como entrar na casa? Haveria alguma porta, alguma janela por onde entrar? Haveria algum alarme? E se o velho fosse louco? Teria armadilhas?
      - Qualquer castelo tem o seu ponto frágil - tentou convencer-se.
      - Qualquer soldado invasor é um ponto frágil - respondeu-lhe a imaginação.
           Enquanto tentava estancar a miríade de perigos que se lhe apresentavam na cabeça, estacou em frente da casa. Estava estupefacto. Encontrara um escadote pousado mesmo por baixo de uma varanda. Parecia estar num dia de sorte.
Decidido, subiu pelo escadote, varrendo com o olhar tudo o que se mexesse à volta. Mais uma vez cheio de sorte, só teve que forçar um pouco a janela e conseguiu entrar. Antes de dar um passo, esperou que os olhos se habituassem. Nem iluminação da rua, nem luar conseguiam entrar ali.
         - Mãos ao alto, seu canalha! - rasgou uma voz o silêncio do escuro.
             O coração do Visitante quase lhe saltava do peito.

           - Pensavas que te escapavas, seu gatuno?!
          Sentiu uma arma apontada à cara e a vida ameaçada. Apenas pôde respirar fundo e repreender-se severamente pela ingenuidade. Deveria ter desconfiado de tantas facilidades. Levantou os braços para finalmente ver a cara do velho e resignar-se ao seu destino. Em vez disso, sentiu passos leves a correr escadas acima. Ficou sem saber como reagir àquilo o que quer que fosse. Baixou os braços.
          O dono da Casa não poderia ser assim tão ameaçador. Nem brincalhão. Nem ter uma voz assim. O Visitante fora enviado por alguém mais importante que o homem da casa. Por isso, concentrou-se na sua missão: seria só falar com ele e ir embora o mais rápido possível.
    Com a vista mais adaptada, já conseguia notar o pavimento em tijoleiras pretas e brancas. Até as manchas de humidade nas paredes era capaz de distinguir. Desceu com cuidado as escadas em direcção à sala no rés-do-chão. Aquele cheiro a humidade parecia conter algo de agradável. Remetia-o para tempos passados. Mas, rapidamente, se adensara e transformara-se num bafo pouco respirável.
   Estranhou que, por dentro, a casa fosse tão compartimentada. De fora, ao longe, sempre lhe parecera um edifício volumoso, de estilo cuidado e bem conservado. Por dentro, surpreendia por ser tão pouco arejado, com espaços demasiado contidos e muito desarrumados.
          De tantas portas trancadas e corredores em que não se podia passar, chegou ao espaço inevitável, o corredor principal. Uma série de retratos, alinhados ao longo da parede, animava um pouco a cinzentez reinante. Pareciam ser os antepassados do habitante. Avançou um pouco mais e chegou à entrada da casa, de onde fora repelido minutos antes. Ao lado, a sala principal. Uma sombra assustadora projectava-se no tecto da sala.
          - Qualquer monstro deve ser enfrentado para ganhar a justa proporção - tentou convencer-se.
           - Qualquer acto de coragem deve estar travejado pela precaução - respondeu-lhe a imaginação.

         Ao entrar, o Visitante não poderia esperar encontro mais tranquilo: o dono da casa, lá estava, com a mansidão de um bebé que dorme, na sua cadeira, junto à lareira. A madeira crepitava, o fogo abrasava, ele repousava. Um aspecto ressaltou à vista: o velho estava de cadeira de rodas. Respirou de alívio. Não seria assim tão difícil quanto pensava.
         - Boa noite! - tocou ao de leve no ombro do dono da Casa.
       O salto que deu na cadeira fê-lo sentir-se ridículo e irritou-se ainda mais.
        - Quem é você? O que está aqui a fazer dentro da minha casa?
          - Você sabia que eu viria! Ou já se tinha esquecido?
     O homem na cadeira de rodas pareceu mudar de fisionomia.
        - Quer dinheiro? Diga-me o que procura e ponha-se a andar.
       - Mas eu não venho à procura de nada. Eu só venho preparar a casa para o hóspede.
       - O hóspede?! Qual hóspede? Eu sou o dono da Casa. Não sei de nenhum hóspede. Deve ser noutro lado.
       - Quando cheguei ao portão ainda me convenceu de que estava enganado. Agora, depois de ver a casa por dentro, estou convencido de que é esta mesma a casa que me pediram para visitar.
        - Que disparate! Pediram? Quem?
       - Agora que estou consigo a falar, vejo que há qualquer coisa em si que me é familiar.
        O dono da Casa arregalou os olhos:
        - Impossível. Ninguém me vê há muitos anos. Esta casa tem sido para mim, o meu refúgio, a minha ermida. Um casulo de protecção.
      - Um casulo asfixiante. Você fechou-se aqui dentro e já não sabe o que é o mundo lá fora. Aliás: nem sei como. Não sente falta de passear? Não se farta de estar fechado aqui dentro com este odor insuportável?
      - Em tempos incomodei-me, agora já não. Para mim, são as pessoas que estão fechadas lá fora.
      - Acomodou-se, portanto.
     - Se você soubesse o que tenho sofrido nesta casa não me acusaria assim.
      - Repare: veja o estado desta casa! A humidade no tecto e nas paredes, a desarrumação, as coisas empilhadas, os móveis partidos, já para não falar das portas trancadas e das janelas fechadas. Esta casa está um caos. Como pode não sofrer? Está na altura de receber um hóspede.
     O dono da Casa aninhou-se na sua cadeira, como que pedindo clemência.
      - Pois é… - confirmou a Visita - já teve o seu tempo. Ou pensou que iria viver sozinho até à eternidade?
      A pergunta bateu no coração do velho como uma lança.
    - Eu disse-lhes! Eu supliquei-lhes que não me fizessem isto.
     - Está a falar de quem?… pensei que não entrava ninguém nesta casa!
     - Aquelas malditas mulheres! - disse indicando as traseiras da casa.
          - Ah, mas há mulheres a viver cá em casa?
      - Sim - disse, soltando um suspiro de exaustão. E completou:
         - Têm-me estragado a vida. Já não tenho forças para as deter. Nem forças nem vista, que estou a ver cada vez pior - desabafou, resignado.
       - Se me dá licença, vou ter que fazer uma vistoria à casa toda. E começo pelas traseiras.

         A Visita deixou o dono da Casa para trás. Aquela conversa pareceu demorar horas, tal o cansaço que deixou na Visita. Afastou-se convicto mas com algum receio do que iria encontrar. Voltou a passar pelo corredor dos retratos, atulhado dum lado e doutro. Reparou que não havia mulheres representadas. Passou adiante, percorreu outro corredor cheio de portas trancadas e coisas amontoadas junto às paredes, tudo coberto com lençóis. Chegou a uma porta larga.
           - Deve ser aqui - intuiu. Teve que remover um móvel que bloqueava a entrada e algumas tábuas pregadas a impedir a abertura.
          - O que está escondido, um dia tem de ser revelado - tentou convencer-se.
        - O que está escondido, quando trazido à luz do dia, pode fazer muitos estragos - respondeu-lhe a imaginação.
     As pancadas causaram o maior alvoroço dentro da biblioteca. A Visita engoliu em seco. Teve dificuldade em fazer com que as mãos obedecessem e deslocassem a porta de correr. Quando finalmente conseguiu, os olhos abriram de surpresa.
       - Meninas, temos visitas! - anunciou de viva voz uma mulher jovem, a recebê-lo de sorriso aberto. Mas não apareceu ninguém para além dela.
        - Sim, olá. A senhora é… - a Visita hesitou na pergunta. A roupa parecia tirada das revistas de moda de há duas décadas:
         - Vive nesta casa?
         - Vivo aqui. Mas não sou daqui.
         - Por que é que está aqui presa?
          - Toco piano. Quer ver? - sentou-se num belo piano de cauda, pôs as mãos em posição e olhou atentamente para a pauta de uma música infantil antiga. Mas em vez de começar, ficou estática, de mãos geladas e olhar petrificado. A Visita interrompeu-a:
          - Sente-se bem?
       - Acontece-me isto há trinta anos. Há dez mil seiscentos e cinquenta e três dias que me sento ao piano e as mãos ficam petrificadas.
         - E por que é que não desiste?
        - Não posso. Desde aquela audição que foi um desastre, fui fechada aqui dentro, para ser esquecida. Só serei liberta se o fracasso de que sou memória for aceite.
       - Se isso resolve alguma coisa, eu aceito-a como é.
      - Não, não. Eu pertenço ao coração de quem me gerou. Pertenço ao homem que vive nesta casa. Só posso ser liberta por ele.
      - E eu, que posso fazer?
    - Não sou a única. Este corredor está cheio de outras como eu. Todas fechadas à chave, para serem caladas e esquecidas. Umas, fruto de acontecimentos traumáticos, outras de situações embaraçosas, outras de fracassos. O homem começou por querer afastar algumas de nós, mas, como somos inseparáveis, acabou a rejeitar-nos a todas.
    - O problema - acrescentou - é que, assim como quis esquecer-nos, também acabou a perder tudo o que aconteceu no passado. Esqueceu-se até do que alguma de nós lhe lembrava constantemente: que era apenas hóspede desta Casa; que um dia acabariam os dias dele aqui. E, nesse dia, a bem ou a mal, seria obrigado a ver-nos a todas de novo. Agora, de cada vez que alguma de nós consegue sair do seu cubículo, o homem apanha um susto de morte. Treme por todos os lados, entra em convulsão e bate-nos como pode. Deixámos de poder falar com ele ou sequer vê-lo. E não foi só connosco. Também nos proibiu de estarmos com os que moram lá em cima.
      - Lá em cima? Há mais alguém a morar nesta Casa?
     - Sim, no pequeno salão-teatro, por cima desta biblioteca.
A Visita estava cada vez mais surpreendida.
     Começou por afastar obstáculos, retirar tábuas pregadas e forçar todas as portas daquele corredor. Detrás de cada uma, uma habitante diferente. Umas mais velhas, outras mais novas. Cada uma presa a um momento da história daquele pobre homem. Cada uma a repetir ininterruptamente esse momento. Cada uma a mostrar uma alegria incrível por ver a Visita, como se se tratasse de um velho conhecido, por muito tempo esperado.
    Só depois subiu as escadas para continuar a vistoria. Conforme se afastou, sentiu o burburinho de vozes femininas a aumentar de volume. Era dia de festa naquele corredor.
No cimo das escadas encontrou um menino. A parede e a porta do teatro pareciam especialmente estragadas pela humidade.
       - Olá! Quem és tu?

           - Eu pinto.
        A Visita aproximou-se para observar. Sentiu a nostalgia daqueles tempos de menino, sem preocupações.
         - Faço desenhos. Sou o melhor do mundo!
       - Parece-me é que gostas de assustar as pessoas que entram na tua casa pela janela!
        O Menino sorriu. Estava rodeado de lápis de cor, lápis de cera, marcadores. Ora pegava num, ora pegava noutro. Gesticulava, ensaiava traços, pontos, manchas. Mas as folhas continuavam brancas.
         - És o melhor do mundo em quê?
         O miúdo sorriu.
         - Não sei. A desenhar?
         - E porque é que não desenhas?
         - Não sei desenhar. Esqueci-me de como se desenha.
      De repente, o Menino que estava aparentemente tão bem disposto desatou a chorar. Eram lágrimas grossas. Abundantes e muito grossas. Parecia que uma barragem a transbordar de tristeza abrira as suas comportas. Num ápice molhou o tapete à volta e ficou uma mancha à volta do miúdo.
        - Não chores! Posso ensinar-te!
    - Sim. Já me ensinaram muitas vezes. Mas esqueço sempre - disse a soluçar.

            - Hum. Olha: e conheces outros meninos como tu?
            - Sim, estão aí dentro, no teatro.
          Como a porta estava trancada e não havia maneira de a abrir, a Visita empoleirou-se no buraco por onde a criança tinha saído e meteu-se lá para dentro.
         - As crianças são um espectáculo - tentou convencer-se.
         - As crianças são um espectáculo, mas um espectáculo triste - respondeu-lhe a imaginação.
      Lá dentro, o ambiente era indescritível. Um monte de crianças enchia aquele espaço como se fosse um jardim infantil. Uns corriam, outros saltavam, outros atiravam coisas, outros ficavam parados com algo que os entretinha. Ouvia-se um que gritava: eu sou um astronauta! Outro dizia: eu sou uma gaivota! Outro: eu sou o maior elefante do mundo!
      Sem se fazer notar, a Visita pôde assistir a um fenómeno estranho: uma primeira criança parara a chorar; a seguir, como um vírus contagioso, várias outras pararam, sentaram-se a soluçar e juntaram-se a ela; ao fim de pouco tempo, era um coro de choro estridente em uníssono. Eram lágrimas grossas. Abundantes e muito grossas. Não tardou até que aquela sala ficasse encharcada em lágrimas de criança. Nenhuma se lembrava de como fazer o que, momentos antes, gritava a pulmões cheios.
       Era tal a abundância de lágrimas que o tapete estava completamente empapado. E com o sol nascente, via-se uma cortina de vapor a elevar-se no ar. A Visita inclinou-se e viu como se acumulava em nuvem no tecto e saía pela janela. Lá fora, uma nuvem de lágrimas chegava a encobrir o telhado da casa e as copas das árvores mais próximas.
         - Isto não pode ser. Não pode.
      A Visita, desceu de onde estava empoleirada, e enfrentou a porta do salão-teatro, agora por dentro.
        - Afastem-se meninos.
     Pegou num machado e começou a desfazer a porta. A cada machadada, os miúdos saltavam e gritavam de alegria. Não tinha ainda terminado o seu trabalho e já um monte de crianças se precipitara pelas escadas abaixo.
       Foi com alguma expectativa que desceu ao piso inferior. Haveria ainda mais alguém naquela casa? Agora sim, percebia toda aquela humidade nas paredes e tectos. Agora sim, percebia que o homem da Casa sentisse a vida ameaçada. Havia segredos a mais. E os segredos estragam até as casas mais sólidas.
      Já no piso térreo, os seus olhos emudeceram de emoção. As Senhoras e os Meninos reencontravam-se e trocavam abraços e carinhos repletos de saudade. Uma coisa o apoquentava: faltava ainda justificar-se perante o homem da Casa.

         - Uma Casa cheia de luz não pode ter um habitante nas trevas - tentou convencer-se.
         - Um habitante nas trevas não pode ter uma Casa cheia de luz - respondeu-lhe a imaginação.
       A caminho da entrada principal, reparou que, no corredor, aparecera um novo quadro. Estacou diante dele e deteve o olhar. Ficou estupefacto. Baixou o olhar, meio atordoado, e viu um livro de capa dura. Na capa, bordado a dourado, dizia "Diário do Hóspede". Por dentro, aquele mesmo dia aparecia relatado, escrito e assinado pelo antigo dono da Casa. Terminava assim: "chegou o novo Hóspede. É tempo de partir".

          Passaram meses e meses. Estação atrás de estação. Ano após ano. Um dia, o Hóspede daquela Casa disse para si mesmo:
           - Parece que foi ontem que cheguei a esta casa!
          E, naquele momento, a campaínha tocou.
          - Quem é?
          - Sou eu.
          - O que deseja?
          - Mandaram-me vir com urgência e eu vim.

fim

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

IRMÃOS GRIMM - O FLAUTISTA DE HAMELIN

O FLAUTISTA DE HAMELIN
REESCRITO PELOS IRMÃO GRIMMM

CONTO FOLCLÓRICO ALEMÃO


HAMELIN
        Hamelin (em alemão: Hameln) é uma cidade da Alemanha no estado de Baixa Saxônia (Niedersachsen), capital do distrito de Hamelin-Pyrmont. Hamelin é cortada pelo rio Weser e localiza-se na região de colinas (Weserbergland) muito procurada por turistas andarilhos e ciclistas.
No local onde se encontra a cidade havia um mosteiro, fundado em 851D.C, ainda durante a alta Idade Média. Uma pequena vila cresceu em suas imediações e tornou-se uma cidade no século XII. A sua época de maior crescimento aconteceu no século XVII, quando em 1664 a cidade foi fortificada, sendo a fronteira do Ducado de Brunswick-Calenberg; em 1864 passou a fazer parte da Prússia.
Déjate encantar por el hechizo de Hamelín, la ciudad de cuento alemana
No final da II Guerra Mundial, a cidade esteve nas manchetes de todo o mundo quando cerca de 200 nazistas, então internados na prisão de Hamelin, foram executados pelas forças britânicas, acusados de crimes de guerra. Entre eles estava Josef Kramer, o comandante do campo de concentração de Bergen-Belsen, bem como Irma Grese, parte integrante da guarda feminina das SS - as “Bestas de Belsen”.
Hameln vor Anker.jpg
A popularidade mundial da cidade veio através do famoso conto dos Irmãos Grimm, O Flautista de Hamelin, que narra a fábula medieval sobre a praga de ratos que infestou a cidade em 1284 e do flautista que a livrou dos ratos e hipnotizou e enfeitiçou suas crianças. O incidente narrado no conto se supõe ter acontecido neste ano do final do século XIII, e é baseado num fato real, provavelmente um pouco diferente do imortalizado na famosa história.
Hamelín, una ciudad de cuento
Apesar de Hamelin possuir uma bela arquitetura medieval com lindas construções desta época, o turismo existe mesmo em grande parte por causa da fama do popular conto, que todo domingo de verão é representado na cidade por atores locais nos lugares autênticos onde ele se passa, acompanhados por uma multidão de visitantes de todo o mundo.
Hameln - Uma cidade da Rota dos Contos de Fadas
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CONTO O FLAUTISTA DE HAMELIN
Autocolante infantil Flautista de hamelin - TenStickers
Há muito tempo, na cidade de Hamelin, aconteceu algo muito estranho: uma manhã, quando seus gordos e satisfeitos habitantes saíram de suas casas, encontraram as ruas invadidas por milhares de ratos que iam devorando, insaciáveis, os grãos dos celeiros e a comida de suas despensas.
Ninguém conseguia imaginar a causa da invasão e, o que era pior, ninguém sabia o que fazer para acabar com a praga.
Por mais que tentassem exterminá-los, ou ao menos afugentá-los, parecia ao contrário que mais e mais ratos apareciam na cidade. Tal era a quantidade de ratos que, dia após dia, começaram a esvaziar as ruas e as casas, e até mesmo os gatos fugiram assustados.
Diante da gravidade da situação, os homens importantes da cidade, vendo suas riquezas sumirem pela voracidade dos ratos, convocaram o conselho e disseram:
– Daremos cem moedas de ouro a quem nos livrar dos ratos!
Pouco depois se apresentou a eles um flautista alto e desengonçado, a quem ninguém havia visto antes, e lhes disse:
– A recompensa será minha. Esta noite não haverá um só rato em Hamelin.
Dito isso, começou a andar pelas ruas e, enquanto passeava, tocava com sua flauta uma melodia maravilhosa, que encantava aos ratos, que iam saindo de seus esconderijos e seguiam hipnotizados os passos do flautista que tocava incessantemente.The Fool Pied Piper - Samuel Ehrhart, 1862-1937              Os hamelineses, ao se verem livres dos ratos, respiraram aliviados. E, tranqüilos e satisfeitos, voltaram aos seus prósperos negócios e tão contente estavam que organizaram uma grande festa para celebrar o final feliz, comendo excelentes manjares e dançando até altas horas da noite.
Na manhã seguinte, o flautista se apresentou ante o Conselho e reclamou aos importantes da cidade as cem moedas de ouro prometidas como recompensa. Porém esses, liberados de seu problema e cegos por sua avareza, reclamaram:
– Saia de nossa cidade! Ou acaso acreditas que te pagaremos tanto ouro por tão pouca coisa como tocar a flauta?
E, dito isso, os honrados homens do Conselho de Hamelin deram-lhe as costas dando grandes gargalhadas.
Furioso pela avareza e ingratidão dos hamelineses, o flautista, da mesma forma que fizera no dia anterior, tocou uma doce melodia uma e outra vez, insistentemente.
Porém desta vez não eram os ratos que o seguiam, e sim as crianças da cidade que, arrebatadas por aquele som maravilhoso, iam atrás dos passos do estranho músico. De mãos dadas e sorridentes, formavam uma grande fileira, surda aos pedidos e gritos de seus pais que, em vão tentavam impedir que seguissem o flautista.dotTale – O Flautista de Hamelin | .Mystery
Porém desta vez não eram os ratos que o seguiam, e sim as crianças da cidade que, arrebatadas por aquele som maravilhoso, iam atrás dos passos do estranho músico. De mãos dadas e sorridentes, formavam uma grande fileira, surda aos pedidos e gritos de seus pais que, em vão tentavam impedir que seguissem o flautista.
Nada conseguiram e o flautista as levou longe, muito longe, tão longe que ninguém poderia supor onde as crianças foram parar.
Todos ficaram muito desesperados e procuraram durante dias suas crianças, mas não encontraram nenhuma sequer. Então o flautista voltou à cidade e foi se encontrar com o Conselho que foram logo lhe pedindo:
– Por favor, flautista! Traga nossas crianças de volta! Prometemos pagar tudo o que devemos à você!Hometown of Pied Piper: Hamelin!
O flautista concordou com uma condição: nunca mais nenhum habitante de Hamelin iria descumprir uma promessa.

Todos concordaram e assim o flautista começou a tocar em sua flauta uma outra melodia. As crianças foram voltando aos poucos e logo estavam todas com seus papais e mamães!
O Conselho pagou o que devia ao flautista por livrar a cidade dos ratos e depois daquele dia nunca mais nenhuma pessoa em Hamelin descumpriu uma promessa!
        FIN

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

ALVES, RUBEM - O PASSARINHO ENGAIOLADO


O PASSARINHO       ENGAIOLADO
RUBEM ALVES
TEOLOGIA DO COTIDIANO, SP, OLHO D’ÁGUA, 1994
O passarinho engaiolado Dentro de uma linda gaiola vivia um passarinho. De sua vida o mínimo que se poderia dizer era que era segura e tranqüila, como seguras e tranqüilas são as vidas das pessoas bem casadas e dos funcionários públicos.
Era monótona, é verdade. Mas a monotonia é o preço que se paga pela segurança. Não há muito o que fazer dentro dos limites de uma gaiola, seja ela feita com arames de ferro ou de deveres. Os sonhos aparecem, mas logo morrem, por não haver espaço para baterem suas asas. Só fica um grande buraco na alma, que cada um enche como pode. Assim, restava ao passarinho ficar pulando de um poleiro para outro, comer, beber, dormir e cantar. O seu canto era o aluguel que pagava ao seu dono pelo gozo da segurança da gaiola.
Bem se lembrava do dia em que, enganado pelo alpiste, entrou no alçapão. Alçapões são assim; têm sempre uma coisa apetitosa dentro. Do alçapão para a gaiola o caminho foi curto, através da Ponte dos Suspiros.
Há aquele famoso poema do Guerra Junqueiro, sobre o melro, o pássaro das risadas de cristal. O velho cura, rancoroso, encontrara seu ninho e prendera os seus filhotes na gaiola. A mãe, desesperada com o destino dos filhos, e incapaz de abrir a portinha de ferro, lhes traz no bico um galho de veneno. Meus filhos, a existência é boa só quando é livre. A liberdade é a lei. Prende-se a asa, mas a alma voa... Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!
É certo que a mãe do passarinho nunca lera o poeta, pois o que ela disse ao seu filho foi: Finalmente minhas orações foram respondidas. Você esta seguro, pelo resto de sua vida. Nada há a temer. Não é preciso se preocupar. Acostuma-se. Cante bonito. Agora posso morrer em paz!
Do seu pequeno espaço ele olhava os outros passarinhos. Os bem-te-vis, atrás dos bichinhos; os sanhaços, entrando mamões adentro; os beija-flores, com seu mágico bater de asas; os urubus, nos seus vôos tranqüilos da fundura do céu; as rolinhas, arrulhando, fazendo amor; as pombas, voando como flechas. Ah! Os prudentes conselhos maternos não o tranqüilizavam. Ele queria ser como os outros pássaros, livres... Ah! Se aquela maldita porta se abrisse.
Pois não é que, para surpresa sua, um dia o seu dono a esqueceu aberta? Ele poderia agora realizar todos os seus sonhos. Estava livre, livre, livre!
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Saiu. Voou para o galho mais próximo. Olhou para baixo. Puxa! Como era alto. Sentiu um pouco de tontura. Estava acostumado com o chão da gaiola, bem pertinho. Teve medo de cair. Agachou-se no galho, para ter mais firmeza. Viu uma outra árvore mais distante. Teve vontade de ir até lá. Perguntou-se se suas asas agüentariam. Elas não estavam acostumadas. O melhor seria não abusar, logo no primeiro dia. Agarrou-se mais firmemente ainda. Neste momento um insetinho passou voando bem na frente do seu bico. Chegara a hora. Esticou o pescoço o mais que pôde, mas o insetinho não era bobo. Sumiu mostrando a língua. – Ei, você! – era uma passarinha. – Vamos voar juntos até o quintal do vizinho. Há uma linda pimenteira, carregadinha de pimentas vermelhas. Deliciosas. Apenas é preciso prestar atenção no gato, que anda por lá... Só o nome gato lhe deu um arrepio. Disse para a passarinha que não gostava de pimentas. A passarinha procurou outro companheiro. Ele preferiu ficar com fome. Chegou o fim da tarde e, com ele a tristeza do crepúsculo. A noite se aproximava. Onde iria dormir? Lembrou-se do prego amigo, na parede da cozinha, onde a sua gaiola ficava dependurada. Teve saudades dele. Teria de dormir num galho de árvore, sem proteção. Gatos sobem em árvores? Eles enxergam no escuro? E era preciso não esquecer os gambás. E tinha de pensar nos meninos com seus estilingues, no dia seguinte.
Tremeu de medo. Nunca imaginara que a liberdade fosse tão complicada. Somente podem gozar a liberdade aqueles que têm coragem. Ele não tinha. Teve saudades da gaiola. Voltou. Felizmente a porta ainda estava aberta.
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Neste momento chegou o dono. Vendo a porta aberta disse:
– Passarinho bobo. Não viu que a porta estava aberta. Deve estar meio cego. Pois passarinho de verdade não fica em gaiola. Gosta mesmo é de voar...