O Hóspede
Anônimo
[Trabalho final da Cadeira de Escrita Criativa,
orientada pelo
professor Henrique Manuel Pereira]
A moradia
era grande e luminosa como um palácio. Encontrava-se no meio de um grande
jardim. O jardim rodeava a casa com carvalhos imponentes. Aqui e ali, canteiros
às cores. À volta do jardim, um muro alto e espesso e um portão pesado, de
ferro forjado, a proteger de mãos e olhares estranhos. Por cima das copas das
árvores, por cima do telhado da casa, uma nuvem permanente acrescentava ao
conjunto uma leve aura de mistério.
Sabia-se que alguém morava ali porque à noite se acendia uma luz solitária. Ora no sótão da casa, ora num janelão grande que dava para o Sul. Por vezes, deixava-se adivinhar na sombra ondulada das cortinas. Nas raras vezes em que a casa era motivo de conversa dizia-se que ali morava um idoso. Ninguém sabia muito sobre ele. Nunca ninguém soubera muito sobre ele.
Era o fim do dia. O manto escuro e frio da noite avançava sobre a cidade. Um homem parou ao portão. Não trazia nada com ele.
-Engraçado! Isto faz-me lembrar alguma coisa! - pensou para si, enquanto repousava o olhar sobre a nuvem, o telhado e as águas furtadas em estilo clássico.
Fez ressoar a campainha do portão com vigor. Esperou. Portas e janelas, nem pestanejar. A porta principal, pregada ao chão. Do jardim ecoou o silêncio húmido da noite. Apenas as folhas das árvores pareciam acordadas porque a brisa fria as afagava. De resto, tudo em pousio, a exigir silêncio. O homem deu o tempo necessário e interrompeu de novo a mudez do escuro. Parecia estar inquieto.
Dentro, o dono da Casa dormitava na letargia da lareira. Acordou sobressaltado com tal chinfrineira. Fazia muito tempo que não ouvia tal ruído. Na verdade, nunca o tinha ouvido desde que chegara àquela casa. Pensava até que, em tempos, teria retirado a campainha do portão. O salto que deu na cadeira fê-lo sentir-se ridículo e irritou-se ainda mais.
- Quem ousará perturbar-me?
Foi num misto de raiva e curiosidade que avançou para a porta. Gritou para o outro lado com a voz ainda entaramelada:
- Quem é?!
- Sou eu - respondeu a Visita.
- O que deseja?
- Mandaram-me vir com urgência e eu vim.
- Com urgência?! Nem com urgência, nem sem urgência. Deve-se ter enganado. Boa noite! - atalhou o Dono da Casa.
O homem, ao portão, sentiu o frio, insidioso, a penetrar-lhe na roupa. Tinham-lhe pedido que ali fosse depressa e afinal tinha apontado mal a morada. Incomodado com o engano, afundou as mãos nos bolsos à procura do recado. "Rua da Ordem, nº111. MUITO URGENTE", dizia. Afastou-se do portão para confirmar a rua e, depois, o número.
- Sim, confere. É aqui mesmo! O raio do velho!...
O homem não se conformou. Voltou a fazer a campaínha tocar.
- Quem é?! - ouviu-se de novo, do outro lado.
- Boa noite! Estou a falar com o senhor que vive aqui?
- Sim, sou eu o dono da Casa!
- Olhe: estive a ver e, de facto, foi daqui que me chamaram...
- Tenho muita pena, mas oiça bem: eu não chamei ninguém. Não me incomode!
- Mas… não estou a perc… !?
O homem ficou desconcertado.
- Isto não pode acabar assim. Não pode.
Releu o recado, procurando justificação para tomar medidas mais ousadas, e começou a procurar modo de saltar o muro e chegar à casa. Não tardou muito até se ver a trepar os dois metros e meio com a ajuda de um contentor de lixo. Desajeitado, saltou para o topo do muro como um inexperiente a tentar montar um cavalo. Agarrou-se a umas ervas, como se fossem crinas, e puxou o corpo todo como pôde, esgravatando o muro com os pés. Foi já sentado nas alturas que descansou a observar o jardim
Naquele preciso momento pareceu-lhe ver movimento no meio dos arbustos. O receio de cães correu-lhe o corpo num arrepio. Esfregou os olhos e redobrou a atenção: parecia não haver perigo. O salto para o chão foi amparado pelas folhas do Outono. O aroma que sentiu trouxe-lhe memórias das brincadeiras de infância.
Aproximou-se da casa e começou a procurar modo de entrar. O velho era danado. Da rua, não se percebia tal parafernália de segurança, mas tinha grades por todo o lado. Algumas janelas estavam mesmo pregadas com tábuas de madeira. Seria talvez a casa mais difícil de assaltar de toda a cidade. Mas também a mais difícil de sair. O muro já estava ultrapassado, faltava agora o mais exigente. Esperava-o um velho entrincheirado lá dentro. Como entrar na casa? Haveria alguma porta, alguma janela por onde entrar? Haveria algum alarme? E se o velho fosse louco? Teria armadilhas?
- Qualquer castelo tem o seu ponto frágil - tentou convencer-se.
- Qualquer soldado invasor é um ponto frágil - respondeu-lhe a imaginação.
Enquanto tentava estancar a miríade de perigos que se lhe apresentavam na cabeça, estacou em frente da casa. Estava estupefacto. Encontrara um escadote pousado mesmo por baixo de uma varanda. Parecia estar num dia de sorte.
Decidido, subiu pelo escadote, varrendo com o olhar tudo o que se mexesse à volta. Mais uma vez cheio de sorte, só teve que forçar um pouco a janela e conseguiu entrar. Antes de dar um passo, esperou que os olhos se habituassem. Nem iluminação da rua, nem luar conseguiam entrar ali.
- Mãos ao alto, seu canalha! - rasgou uma voz o silêncio do escuro.
O coração do Visitante quase lhe saltava do peito.
Sabia-se que alguém morava ali porque à noite se acendia uma luz solitária. Ora no sótão da casa, ora num janelão grande que dava para o Sul. Por vezes, deixava-se adivinhar na sombra ondulada das cortinas. Nas raras vezes em que a casa era motivo de conversa dizia-se que ali morava um idoso. Ninguém sabia muito sobre ele. Nunca ninguém soubera muito sobre ele.
Era o fim do dia. O manto escuro e frio da noite avançava sobre a cidade. Um homem parou ao portão. Não trazia nada com ele.
-Engraçado! Isto faz-me lembrar alguma coisa! - pensou para si, enquanto repousava o olhar sobre a nuvem, o telhado e as águas furtadas em estilo clássico.
Fez ressoar a campainha do portão com vigor. Esperou. Portas e janelas, nem pestanejar. A porta principal, pregada ao chão. Do jardim ecoou o silêncio húmido da noite. Apenas as folhas das árvores pareciam acordadas porque a brisa fria as afagava. De resto, tudo em pousio, a exigir silêncio. O homem deu o tempo necessário e interrompeu de novo a mudez do escuro. Parecia estar inquieto.
Dentro, o dono da Casa dormitava na letargia da lareira. Acordou sobressaltado com tal chinfrineira. Fazia muito tempo que não ouvia tal ruído. Na verdade, nunca o tinha ouvido desde que chegara àquela casa. Pensava até que, em tempos, teria retirado a campainha do portão. O salto que deu na cadeira fê-lo sentir-se ridículo e irritou-se ainda mais.
- Quem ousará perturbar-me?
Foi num misto de raiva e curiosidade que avançou para a porta. Gritou para o outro lado com a voz ainda entaramelada:
- Quem é?!
- Sou eu - respondeu a Visita.
- O que deseja?
- Mandaram-me vir com urgência e eu vim.
- Com urgência?! Nem com urgência, nem sem urgência. Deve-se ter enganado. Boa noite! - atalhou o Dono da Casa.
O homem, ao portão, sentiu o frio, insidioso, a penetrar-lhe na roupa. Tinham-lhe pedido que ali fosse depressa e afinal tinha apontado mal a morada. Incomodado com o engano, afundou as mãos nos bolsos à procura do recado. "Rua da Ordem, nº111. MUITO URGENTE", dizia. Afastou-se do portão para confirmar a rua e, depois, o número.
- Sim, confere. É aqui mesmo! O raio do velho!...
O homem não se conformou. Voltou a fazer a campaínha tocar.
- Quem é?! - ouviu-se de novo, do outro lado.
- Boa noite! Estou a falar com o senhor que vive aqui?
- Sim, sou eu o dono da Casa!
- Olhe: estive a ver e, de facto, foi daqui que me chamaram...
- Tenho muita pena, mas oiça bem: eu não chamei ninguém. Não me incomode!
- Mas… não estou a perc… !?
O homem ficou desconcertado.
- Isto não pode acabar assim. Não pode.
Releu o recado, procurando justificação para tomar medidas mais ousadas, e começou a procurar modo de saltar o muro e chegar à casa. Não tardou muito até se ver a trepar os dois metros e meio com a ajuda de um contentor de lixo. Desajeitado, saltou para o topo do muro como um inexperiente a tentar montar um cavalo. Agarrou-se a umas ervas, como se fossem crinas, e puxou o corpo todo como pôde, esgravatando o muro com os pés. Foi já sentado nas alturas que descansou a observar o jardim
Naquele preciso momento pareceu-lhe ver movimento no meio dos arbustos. O receio de cães correu-lhe o corpo num arrepio. Esfregou os olhos e redobrou a atenção: parecia não haver perigo. O salto para o chão foi amparado pelas folhas do Outono. O aroma que sentiu trouxe-lhe memórias das brincadeiras de infância.
Aproximou-se da casa e começou a procurar modo de entrar. O velho era danado. Da rua, não se percebia tal parafernália de segurança, mas tinha grades por todo o lado. Algumas janelas estavam mesmo pregadas com tábuas de madeira. Seria talvez a casa mais difícil de assaltar de toda a cidade. Mas também a mais difícil de sair. O muro já estava ultrapassado, faltava agora o mais exigente. Esperava-o um velho entrincheirado lá dentro. Como entrar na casa? Haveria alguma porta, alguma janela por onde entrar? Haveria algum alarme? E se o velho fosse louco? Teria armadilhas?
- Qualquer castelo tem o seu ponto frágil - tentou convencer-se.
- Qualquer soldado invasor é um ponto frágil - respondeu-lhe a imaginação.
Enquanto tentava estancar a miríade de perigos que se lhe apresentavam na cabeça, estacou em frente da casa. Estava estupefacto. Encontrara um escadote pousado mesmo por baixo de uma varanda. Parecia estar num dia de sorte.
Decidido, subiu pelo escadote, varrendo com o olhar tudo o que se mexesse à volta. Mais uma vez cheio de sorte, só teve que forçar um pouco a janela e conseguiu entrar. Antes de dar um passo, esperou que os olhos se habituassem. Nem iluminação da rua, nem luar conseguiam entrar ali.
- Mãos ao alto, seu canalha! - rasgou uma voz o silêncio do escuro.
O coração do Visitante quase lhe saltava do peito.
- Pensavas
que te escapavas, seu gatuno?!
Sentiu uma
arma apontada à cara e a vida ameaçada. Apenas pôde respirar fundo e
repreender-se severamente pela ingenuidade. Deveria ter desconfiado de tantas
facilidades. Levantou os braços para finalmente ver a cara do velho e
resignar-se ao seu destino. Em vez disso, sentiu passos leves a correr escadas
acima. Ficou sem saber como reagir àquilo o que quer que fosse. Baixou os
braços.
O dono da
Casa não poderia ser assim tão ameaçador. Nem brincalhão. Nem ter uma voz
assim. O Visitante fora enviado por alguém mais importante que o homem da casa.
Por isso, concentrou-se na sua missão: seria só falar com ele e ir embora o
mais rápido possível.
Com a vista
mais adaptada, já conseguia notar o pavimento em tijoleiras pretas e brancas.
Até as manchas de humidade nas paredes era capaz de distinguir. Desceu com
cuidado as escadas em direcção à sala no rés-do-chão. Aquele cheiro a humidade
parecia conter algo de agradável. Remetia-o para tempos passados. Mas,
rapidamente, se adensara e transformara-se num bafo pouco respirável.
Estranhou
que, por dentro, a casa fosse tão compartimentada. De fora, ao longe, sempre
lhe parecera um edifício volumoso, de estilo cuidado e bem conservado. Por
dentro, surpreendia por ser tão pouco arejado, com espaços demasiado contidos e
muito desarrumados.
De tantas
portas trancadas e corredores em que não se podia passar, chegou ao espaço
inevitável, o corredor principal. Uma série de retratos, alinhados ao longo da
parede, animava um pouco a cinzentez reinante. Pareciam ser os antepassados do
habitante. Avançou um pouco mais e chegou à entrada da casa, de onde fora
repelido minutos antes. Ao lado, a sala principal. Uma sombra assustadora
projectava-se no tecto da sala.
- Qualquer
monstro deve ser enfrentado para ganhar a justa proporção - tentou
convencer-se.
- Qualquer
acto de coragem deve estar travejado pela precaução - respondeu-lhe a
imaginação.
Ao entrar, o
Visitante não poderia esperar encontro mais tranquilo: o dono da casa, lá
estava, com a mansidão de um bebé que dorme, na sua cadeira, junto à lareira. A
madeira crepitava, o fogo abrasava, ele repousava. Um aspecto ressaltou à
vista: o velho estava de cadeira de rodas. Respirou de alívio. Não seria assim
tão difícil quanto pensava.
- Boa noite!
- tocou ao de leve no ombro do dono da Casa.
O salto que
deu na cadeira fê-lo sentir-se ridículo e irritou-se ainda mais.
- Quem é
você? O que está aqui a fazer dentro da minha casa?
- Você sabia
que eu viria! Ou já se tinha esquecido?
O homem na
cadeira de rodas pareceu mudar de fisionomia.
- Quer
dinheiro? Diga-me o que procura e ponha-se a andar.
- Mas eu não
venho à procura de nada. Eu só venho preparar a casa para o hóspede.
- O
hóspede?! Qual hóspede? Eu sou o dono da Casa. Não sei de nenhum hóspede. Deve
ser noutro lado.
- Quando
cheguei ao portão ainda me convenceu de que estava enganado. Agora, depois de
ver a casa por dentro, estou convencido de que é esta mesma a casa que me
pediram para visitar.
- Que
disparate! Pediram? Quem?
- Agora que
estou consigo a falar, vejo que há qualquer coisa em si que me é familiar.
O dono da
Casa arregalou os olhos:
-
Impossível. Ninguém me vê há muitos anos. Esta casa tem sido para mim, o meu
refúgio, a minha ermida. Um casulo de protecção.
- Um casulo
asfixiante. Você fechou-se aqui dentro e já não sabe o que é o mundo lá fora.
Aliás: nem sei como. Não sente falta de passear? Não se farta de estar fechado
aqui dentro com este odor insuportável?
- Em tempos
incomodei-me, agora já não. Para mim, são as pessoas que estão fechadas lá
fora.
-
Acomodou-se, portanto.
- Se você
soubesse o que tenho sofrido nesta casa não me acusaria assim.
- Repare:
veja o estado desta casa! A humidade no tecto e nas paredes, a desarrumação, as
coisas empilhadas, os móveis partidos, já para não falar das portas trancadas e
das janelas fechadas. Esta casa está um caos. Como pode não sofrer? Está na
altura de receber um hóspede.
O dono da
Casa aninhou-se na sua cadeira, como que pedindo clemência.
- Pois é… -
confirmou a Visita - já teve o seu tempo. Ou pensou que iria viver sozinho até
à eternidade?
A pergunta
bateu no coração do velho como uma lança.
- Eu
disse-lhes! Eu supliquei-lhes que não me fizessem isto.
- Está a
falar de quem?… pensei que não entrava ninguém nesta casa!
- Aquelas
malditas mulheres! - disse indicando as traseiras da casa.
- Ah, mas há
mulheres a viver cá em casa?
- Sim -
disse, soltando um suspiro de exaustão. E completou:
- Têm-me
estragado a vida. Já não tenho forças para as deter. Nem forças nem vista, que
estou a ver cada vez pior - desabafou, resignado.
- Se me dá licença, vou ter que fazer uma vistoria à casa toda. E começo
pelas traseiras.
A Visita
deixou o dono da Casa para trás. Aquela conversa pareceu demorar horas, tal o
cansaço que deixou na Visita. Afastou-se convicto mas com algum receio do que
iria encontrar. Voltou a passar pelo corredor dos retratos, atulhado dum lado e
doutro. Reparou que não havia mulheres representadas. Passou adiante, percorreu
outro corredor cheio de portas trancadas e coisas amontoadas junto às paredes,
tudo coberto com lençóis. Chegou a uma porta larga.
- Deve ser
aqui - intuiu. Teve que remover um móvel que bloqueava a entrada e algumas
tábuas pregadas a impedir a abertura.
- O que está
escondido, um dia tem de ser revelado - tentou convencer-se.
- O que está
escondido, quando trazido à luz do dia, pode fazer muitos estragos -
respondeu-lhe a imaginação.
As pancadas
causaram o maior alvoroço dentro da biblioteca. A Visita engoliu em seco. Teve
dificuldade em fazer com que as mãos obedecessem e deslocassem a porta de
correr. Quando finalmente conseguiu, os olhos abriram de surpresa.
- Meninas,
temos visitas! - anunciou de viva voz uma mulher jovem, a recebê-lo de sorriso
aberto. Mas não apareceu ninguém para além dela.
- Sim, olá.
A senhora é… - a Visita hesitou na pergunta. A roupa parecia tirada das
revistas de moda de há duas décadas:
- Vive nesta
casa?
- Vivo aqui.
Mas não sou daqui.
- Por que é
que está aqui presa?
- Toco
piano. Quer ver? - sentou-se num belo piano de cauda, pôs as mãos em posição e
olhou atentamente para a pauta de uma música infantil antiga. Mas em vez de
começar, ficou estática, de mãos geladas e olhar petrificado. A Visita
interrompeu-a:
- Sente-se
bem?
-
Acontece-me isto há trinta anos. Há dez mil seiscentos e cinquenta e três dias
que me sento ao piano e as mãos ficam petrificadas.
- E por que
é que não desiste?
- Não posso.
Desde aquela audição que foi um desastre, fui fechada aqui dentro, para ser
esquecida. Só serei liberta se o fracasso de que sou memória for aceite.
- Se isso
resolve alguma coisa, eu aceito-a como é.
- Não, não.
Eu pertenço ao coração de quem me gerou. Pertenço ao homem que vive nesta casa.
Só posso ser liberta por ele.
- E eu, que
posso fazer?
- Não sou a
única. Este corredor está cheio de outras como eu. Todas fechadas à chave, para
serem caladas e esquecidas. Umas, fruto de acontecimentos traumáticos, outras
de situações embaraçosas, outras de fracassos. O homem começou por querer
afastar algumas de nós, mas, como somos inseparáveis, acabou a rejeitar-nos a
todas.
- O problema
- acrescentou - é que, assim como quis esquecer-nos, também acabou a perder
tudo o que aconteceu no passado. Esqueceu-se até do que alguma de nós lhe
lembrava constantemente: que era apenas hóspede desta Casa; que um dia
acabariam os dias dele aqui. E, nesse dia, a bem ou a mal, seria obrigado a
ver-nos a todas de novo. Agora, de cada vez que alguma de nós consegue sair do
seu cubículo, o homem apanha um susto de morte. Treme por todos os lados, entra
em convulsão e bate-nos como pode. Deixámos de poder falar com ele ou sequer
vê-lo. E não foi só connosco. Também nos proibiu de estarmos com os que moram
lá em cima.
- Lá em
cima? Há mais alguém a morar nesta Casa?
- Sim, no
pequeno salão-teatro, por cima desta biblioteca.
A Visita
estava cada vez mais surpreendida.
Começou por
afastar obstáculos, retirar tábuas pregadas e forçar todas as portas daquele
corredor. Detrás de cada uma, uma habitante diferente. Umas mais velhas, outras
mais novas. Cada uma presa a um momento da história daquele pobre homem. Cada
uma a repetir ininterruptamente esse momento. Cada uma a mostrar uma alegria
incrível por ver a Visita, como se se tratasse de um velho conhecido, por muito
tempo esperado.
Só depois
subiu as escadas para continuar a vistoria. Conforme se afastou, sentiu o
burburinho de vozes femininas a aumentar de volume. Era dia de festa naquele
corredor.
No cimo das
escadas encontrou um menino. A parede e a porta do teatro pareciam
especialmente estragadas pela humidade.
- Olá! Quem
és tu?
- Eu pinto.
A Visita aproximou-se para observar. Sentiu a nostalgia daqueles tempos
de menino, sem preocupações.
- Faço
desenhos. Sou o melhor do mundo!
- Parece-me
é que gostas de assustar as pessoas que entram na tua casa pela janela!
O Menino
sorriu. Estava rodeado de lápis de cor, lápis de cera, marcadores. Ora pegava
num, ora pegava noutro. Gesticulava, ensaiava traços, pontos, manchas. Mas as
folhas continuavam brancas.
- És o
melhor do mundo em quê?
O miúdo
sorriu.
- Não sei. A
desenhar?
- E porque é
que não desenhas?
- Não sei
desenhar. Esqueci-me de como se desenha.
De repente,
o Menino que estava aparentemente tão bem disposto desatou a chorar. Eram
lágrimas grossas. Abundantes e muito grossas. Parecia que uma barragem a
transbordar de tristeza abrira as suas comportas. Num ápice molhou o tapete à
volta e ficou uma mancha à volta do miúdo.
- Não
chores! Posso ensinar-te!
- Sim. Já me
ensinaram muitas vezes. Mas esqueço sempre - disse a soluçar.
- Hum. Olha: e conheces outros meninos como tu?
- Sim, estão aí dentro, no teatro.
Como a porta estava trancada e não havia maneira de a abrir, a Visita empoleirou-se no buraco por onde a criança tinha saído e meteu-se lá para dentro.
- As crianças são um espectáculo - tentou convencer-se.
- As crianças são um espectáculo, mas um espectáculo triste - respondeu-lhe a imaginação.
Lá dentro, o ambiente era indescritível. Um monte de crianças enchia aquele espaço como se fosse um jardim infantil. Uns corriam, outros saltavam, outros atiravam coisas, outros ficavam parados com algo que os entretinha. Ouvia-se um que gritava: eu sou um astronauta! Outro dizia: eu sou uma gaivota! Outro: eu sou o maior elefante do mundo!
Sem se fazer notar, a Visita pôde assistir a um fenómeno estranho: uma primeira criança parara a chorar; a seguir, como um vírus contagioso, várias outras pararam, sentaram-se a soluçar e juntaram-se a ela; ao fim de pouco tempo, era um coro de choro estridente em uníssono. Eram lágrimas grossas. Abundantes e muito grossas. Não tardou até que aquela sala ficasse encharcada em lágrimas de criança. Nenhuma se lembrava de como fazer o que, momentos antes, gritava a pulmões cheios.
Era tal a abundância de lágrimas que o tapete estava completamente empapado. E com o sol nascente, via-se uma cortina de vapor a elevar-se no ar. A Visita inclinou-se e viu como se acumulava em nuvem no tecto e saía pela janela. Lá fora, uma nuvem de lágrimas chegava a encobrir o telhado da casa e as copas das árvores mais próximas.
- Isto não pode ser. Não pode.
A Visita, desceu de onde estava empoleirada, e enfrentou a porta do salão-teatro, agora por dentro.
- Afastem-se meninos.
Pegou num machado e começou a desfazer a porta. A cada machadada, os miúdos saltavam e gritavam de alegria. Não tinha ainda terminado o seu trabalho e já um monte de crianças se precipitara pelas escadas abaixo.
Foi com alguma expectativa que desceu ao piso inferior. Haveria ainda mais alguém naquela casa? Agora sim, percebia toda aquela humidade nas paredes e tectos. Agora sim, percebia que o homem da Casa sentisse a vida ameaçada. Havia segredos a mais. E os segredos estragam até as casas mais sólidas.
Já no piso térreo, os seus olhos emudeceram de emoção. As Senhoras e os Meninos reencontravam-se e trocavam abraços e carinhos repletos de saudade. Uma coisa o apoquentava: faltava ainda justificar-se perante o homem da Casa.
- Uma Casa
cheia de luz não pode ter um habitante nas trevas - tentou convencer-se.
- Um
habitante nas trevas não pode ter uma Casa cheia de luz - respondeu-lhe a imaginação.
A caminho da
entrada principal, reparou que, no corredor, aparecera um novo quadro. Estacou
diante dele e deteve o olhar. Ficou estupefacto. Baixou o olhar, meio
atordoado, e viu um livro de capa dura. Na capa, bordado a dourado, dizia
"Diário do Hóspede". Por dentro, aquele mesmo dia aparecia relatado,
escrito e assinado pelo antigo dono da Casa. Terminava assim: "chegou o
novo Hóspede. É tempo de partir".
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