quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

ADELAIDE ABREU-DOS-SANTOS - SANKOFA

 SANKOFA

SANKOFA – SÍMBOLO DE RESGATE AO PASSADO


DO PROVÉRBIO: SE WO WERE FI NA WO SANKOFA A YENKYI.
TRADUÇÃO: NÃO É TABU VOLTAR PARA TRÁS E RECUPERAR O QUE VOCÊ PERDEU.




SÍMBOLO
 
      Um símbolo associado frequentemente ao Sankofa é o pássaro de passagem, as aves migratórias.
         Ele está sempre olhando para trás.
        É uma maneira de dizer que apesar do pássaro voar para a frente olha continuamente para trás. Para o seu passado.
      Há quem diga que ele representa a vida e a morte.
    Sankofa é um dos ideogramas utilizados pelo sistema de escrita Adinkra, que compunha as várias formas de expressão escrita existentes na antiga África, utilizado pelos povos Akan, da África Central.
     Os ideogramas são impressos no vestuário, em objetos e em adereços.
     O símbolo Sankofa dos Adinkras, um pássaro estilizado que se move para a frente, mas sempre olha para trás, lembra-nos que é impossível entender o presente sem entender e estar conscientes do passado.
     Um símbolo Adinkra dos povos Akans cujo significado é o retorno ao passado, resgatando o que foi perdido e caminhando para a frente


O RETORNO ÀS RAÍZES.

        Não importa quão longe estejas, hás de retornar para casa.
      É o símbolo da importância de aprender com o passado.
     O Sankofa transmite mensagens como: Volte e pegue, ou retorne e aprenda com o passado;
Não é nenhum tabu retornar e pegar o que se esqueceu;
       Sempre se pode corrigir os erros;
       Para ir adiante é preciso retornar ao passado.
      Assim como nós reivindicamos este símbolo, ele já foi apropriado por outras entidades do movimento negro e tem sido largamente reivindicado por outras tantas.
    Trata-se, na realidade, de metalinguagem, o símbolo significando a ele mesmo.
     Além do pássaro, há outro símbolo que representa o Sankofa, é o de um coração.
     Esse provérbio ensina a sabedoria do aprendizado com o conhecimento do passado e do aperfeiçoamento que isso produz. Ou seja, a sabedoria de aprender com o passado, para ajudar a melhora do futuro.
                             
DUALIDADE

SIMBOLOGIA ADINKRA – AXANTES DE GANA

       Entre as manifestações culturais da nação Axante, destaca-se o estampado Adinkra.
         Encontra-se também no povo Gyaman, da Costa do Marfim.
     Adinkras são símbolos que representam provérbios e aforismos.
    É uma linguagem de ideogramas impressos, em padrões repetidos, sobre um tecido de algodão.
    Considerado como um objeto de arte, o Adinkra (adeus, em twi) constitui um código do conhecimento referente às crenças e a história deste povo.
     A escrita de símbolos Adinkra reflete um sistema de valores humanos universais:
   Família, integridade, tolerância, harmonia e determinação, entre outros.
      Existem centenas de símbolos e a maioria deles é de origem ancestral, sendo transmitidos de geração em geração.
   Muitos representam virtudes, sagas populares, provérbios ou eventos históricos.
     Os ganeses geralmente escolhem suas roupas para usar segundo o significado das cores e dos símbolos estampados nelas.
    A estampa e a cor expressam sentimentos de ocasiões específicas como festas de funerais, festivais tradicionais, ritos de iniciação como o da puberdade, casamentos, durbars etc.
    A alegria está relacionada a cores alegres e ao branco, enquanto, que para funerais e luto predominam as cores como azul e vermelho escuro, marrom ou preto.
   Quando as pessoas vestem vermelho escuro ou marrom, isso significa que perderam recentemente um parente próximo.
   A cor preta ou azul escuro demonstra a dor prolongada pela perda de uma pessoa amada como os pais, filhos ou companheiro.
       Adinkra significa adeus.
      Originalmente esses símbolos eram usados para enfeitar o vestuário destinado às cerimônias fúnebres.
Os desenhos eram feitos recortando-se os símbolos em cacos de cabaça, para usá-los como carimbos sobre os tecidos.
       Posteriormente, os tecidos Adinkra passaram a ser usados por líderes espirituais em cerimônias e rituais.
        Evitava-se usá-los no dia a dia, também pelo fato de que a tinta desbotava ao lavar.
       Atualmente, os tecidos Adinkra são usados pelos ganenses em diversas ocasiões, tais como casamentos, batismos e rituais de iniciação.
       Além de serem usados sobre tecidos, também se aplicam nas paredes, na cerâmica e nos logotipos.

NOTA: Espero que tenham gostado destas curiosidades. Adoro descobrir coisas novas e interessantes. As culturas são fascinantes.
          Obrigado pela visita!
Adelaide Abreu dos Santos

sábado, 2 de janeiro de 2021

ANÔNIMO (CONTO PORTUGUÊS) - O HÓSPEDE

O Hóspede

Anônimo
[Trabalho final da Cadeira de Escrita Criativa,
orientada pelo
professor Henrique Manuel Pereira]

          A moradia era grande e luminosa como um palácio. Encontrava-se no meio de um grande jardim. O jardim rodeava a casa com carvalhos imponentes. Aqui e ali, canteiros às cores. À volta do jardim, um muro alto e espesso e um portão pesado, de ferro forjado, a proteger de mãos e olhares estranhos. Por cima das copas das árvores, por cima do telhado da casa, uma nuvem permanente acrescentava ao conjunto uma leve aura de mistério.
        Sabia-se que alguém morava ali porque à noite se acendia uma luz solitária. Ora no sótão da casa, ora num janelão grande que dava para o Sul. Por vezes, deixava-se adivinhar na sombra ondulada das cortinas. Nas raras vezes em que a casa era motivo de conversa dizia-se que ali morava um idoso. Ninguém sabia muito sobre ele. Nunca ninguém soubera muito sobre ele.
         Era o fim do dia. O manto escuro e frio da noite avançava sobre a cidade. Um homem parou ao portão. Não trazia nada com ele.
        -Engraçado! Isto faz-me lembrar alguma coisa! - pensou para si, enquanto repousava o olhar sobre a nuvem, o telhado e as águas furtadas em estilo clássico.
         Fez ressoar a campainha do portão com vigor. Esperou. Portas e janelas, nem pestanejar. A porta principal, pregada ao chão. Do jardim ecoou o silêncio húmido da noite. Apenas as folhas das árvores pareciam acordadas porque a brisa fria as afagava. De resto, tudo em pousio, a exigir silêncio. O homem deu o tempo necessário e interrompeu de novo a mudez do escuro. Parecia estar inquieto.
         Dentro, o dono da Casa dormitava na letargia da lareira. Acordou sobressaltado com tal chinfrineira. Fazia muito tempo que não ouvia tal ruído. Na verdade, nunca o tinha ouvido desde que chegara àquela casa. Pensava até que, em tempos, teria retirado a campainha do portão. O salto que deu na cadeira fê-lo sentir-se ridículo e irritou-se ainda mais.
              - Quem ousará perturbar-me?
          Foi num misto de raiva e curiosidade que avançou para a porta. Gritou para o outro lado com a voz ainda entaramelada:
             - Quem é?!
             - Sou eu - respondeu a Visita.
             - O que deseja?
             - Mandaram-me vir com urgência e eu vim.
       - Com urgência?! Nem com urgência, nem sem urgência. Deve-se ter enganado. Boa noite! - atalhou o Dono da Casa.
        O homem, ao portão, sentiu o frio, insidioso, a penetrar-lhe na roupa. Tinham-lhe pedido que ali fosse depressa e afinal tinha apontado mal a morada. Incomodado com o engano, afundou as mãos nos bolsos à procura do recado. "Rua da Ordem, nº111. MUITO URGENTE", dizia. Afastou-se do portão para confirmar a rua e, depois, o número.
            - Sim, confere. É aqui mesmo! O raio do velho!...
O homem não se conformou. Voltou a fazer a campaínha tocar.
           - Quem é?! - ouviu-se de novo, do outro lado.
          - Boa noite! Estou a falar com o senhor que vive aqui?
           - Sim, sou eu o dono da Casa!
        - Olhe: estive a ver e, de facto, foi daqui que me chamaram...
       - Tenho muita pena, mas oiça bem: eu não chamei ninguém. Não me incomode!
          - Mas… não estou a perc… !?
          O homem ficou desconcertado.
          - Isto não pode acabar assim. Não pode.
     Releu o recado, procurando justificação para tomar medidas mais ousadas, e começou a procurar modo de saltar o muro e chegar à casa. Não tardou muito até se ver a trepar os dois metros e meio com a ajuda de um contentor de lixo. Desajeitado, saltou para o topo do muro como um inexperiente a tentar montar um cavalo. Agarrou-se a umas ervas, como se fossem crinas, e puxou o corpo todo como pôde, esgravatando o muro com os pés. Foi já sentado nas alturas que descansou a observar o jardim

           Naquele preciso momento pareceu-lhe ver movimento no meio dos arbustos. O receio de cães correu-lhe o corpo num arrepio. Esfregou os olhos e redobrou a atenção: parecia não haver perigo. O salto para o chão foi amparado pelas folhas do Outono. O aroma que sentiu trouxe-lhe memórias das brincadeiras de infância.
          Aproximou-se da casa e começou a procurar modo de entrar. O velho era danado. Da rua, não se percebia tal parafernália de segurança, mas tinha grades por todo o lado. Algumas janelas estavam mesmo pregadas com tábuas de madeira. Seria talvez a casa mais difícil de assaltar de toda a cidade. Mas também a mais difícil de sair. O muro já estava ultrapassado, faltava agora o mais exigente. Esperava-o um velho entrincheirado lá dentro. Como entrar na casa? Haveria alguma porta, alguma janela por onde entrar? Haveria algum alarme? E se o velho fosse louco? Teria armadilhas?
      - Qualquer castelo tem o seu ponto frágil - tentou convencer-se.
      - Qualquer soldado invasor é um ponto frágil - respondeu-lhe a imaginação.
           Enquanto tentava estancar a miríade de perigos que se lhe apresentavam na cabeça, estacou em frente da casa. Estava estupefacto. Encontrara um escadote pousado mesmo por baixo de uma varanda. Parecia estar num dia de sorte.
Decidido, subiu pelo escadote, varrendo com o olhar tudo o que se mexesse à volta. Mais uma vez cheio de sorte, só teve que forçar um pouco a janela e conseguiu entrar. Antes de dar um passo, esperou que os olhos se habituassem. Nem iluminação da rua, nem luar conseguiam entrar ali.
         - Mãos ao alto, seu canalha! - rasgou uma voz o silêncio do escuro.
             O coração do Visitante quase lhe saltava do peito.

           - Pensavas que te escapavas, seu gatuno?!
          Sentiu uma arma apontada à cara e a vida ameaçada. Apenas pôde respirar fundo e repreender-se severamente pela ingenuidade. Deveria ter desconfiado de tantas facilidades. Levantou os braços para finalmente ver a cara do velho e resignar-se ao seu destino. Em vez disso, sentiu passos leves a correr escadas acima. Ficou sem saber como reagir àquilo o que quer que fosse. Baixou os braços.
          O dono da Casa não poderia ser assim tão ameaçador. Nem brincalhão. Nem ter uma voz assim. O Visitante fora enviado por alguém mais importante que o homem da casa. Por isso, concentrou-se na sua missão: seria só falar com ele e ir embora o mais rápido possível.
    Com a vista mais adaptada, já conseguia notar o pavimento em tijoleiras pretas e brancas. Até as manchas de humidade nas paredes era capaz de distinguir. Desceu com cuidado as escadas em direcção à sala no rés-do-chão. Aquele cheiro a humidade parecia conter algo de agradável. Remetia-o para tempos passados. Mas, rapidamente, se adensara e transformara-se num bafo pouco respirável.
   Estranhou que, por dentro, a casa fosse tão compartimentada. De fora, ao longe, sempre lhe parecera um edifício volumoso, de estilo cuidado e bem conservado. Por dentro, surpreendia por ser tão pouco arejado, com espaços demasiado contidos e muito desarrumados.
          De tantas portas trancadas e corredores em que não se podia passar, chegou ao espaço inevitável, o corredor principal. Uma série de retratos, alinhados ao longo da parede, animava um pouco a cinzentez reinante. Pareciam ser os antepassados do habitante. Avançou um pouco mais e chegou à entrada da casa, de onde fora repelido minutos antes. Ao lado, a sala principal. Uma sombra assustadora projectava-se no tecto da sala.
          - Qualquer monstro deve ser enfrentado para ganhar a justa proporção - tentou convencer-se.
           - Qualquer acto de coragem deve estar travejado pela precaução - respondeu-lhe a imaginação.

         Ao entrar, o Visitante não poderia esperar encontro mais tranquilo: o dono da casa, lá estava, com a mansidão de um bebé que dorme, na sua cadeira, junto à lareira. A madeira crepitava, o fogo abrasava, ele repousava. Um aspecto ressaltou à vista: o velho estava de cadeira de rodas. Respirou de alívio. Não seria assim tão difícil quanto pensava.
         - Boa noite! - tocou ao de leve no ombro do dono da Casa.
       O salto que deu na cadeira fê-lo sentir-se ridículo e irritou-se ainda mais.
        - Quem é você? O que está aqui a fazer dentro da minha casa?
          - Você sabia que eu viria! Ou já se tinha esquecido?
     O homem na cadeira de rodas pareceu mudar de fisionomia.
        - Quer dinheiro? Diga-me o que procura e ponha-se a andar.
       - Mas eu não venho à procura de nada. Eu só venho preparar a casa para o hóspede.
       - O hóspede?! Qual hóspede? Eu sou o dono da Casa. Não sei de nenhum hóspede. Deve ser noutro lado.
       - Quando cheguei ao portão ainda me convenceu de que estava enganado. Agora, depois de ver a casa por dentro, estou convencido de que é esta mesma a casa que me pediram para visitar.
        - Que disparate! Pediram? Quem?
       - Agora que estou consigo a falar, vejo que há qualquer coisa em si que me é familiar.
        O dono da Casa arregalou os olhos:
        - Impossível. Ninguém me vê há muitos anos. Esta casa tem sido para mim, o meu refúgio, a minha ermida. Um casulo de protecção.
      - Um casulo asfixiante. Você fechou-se aqui dentro e já não sabe o que é o mundo lá fora. Aliás: nem sei como. Não sente falta de passear? Não se farta de estar fechado aqui dentro com este odor insuportável?
      - Em tempos incomodei-me, agora já não. Para mim, são as pessoas que estão fechadas lá fora.
      - Acomodou-se, portanto.
     - Se você soubesse o que tenho sofrido nesta casa não me acusaria assim.
      - Repare: veja o estado desta casa! A humidade no tecto e nas paredes, a desarrumação, as coisas empilhadas, os móveis partidos, já para não falar das portas trancadas e das janelas fechadas. Esta casa está um caos. Como pode não sofrer? Está na altura de receber um hóspede.
     O dono da Casa aninhou-se na sua cadeira, como que pedindo clemência.
      - Pois é… - confirmou a Visita - já teve o seu tempo. Ou pensou que iria viver sozinho até à eternidade?
      A pergunta bateu no coração do velho como uma lança.
    - Eu disse-lhes! Eu supliquei-lhes que não me fizessem isto.
     - Está a falar de quem?… pensei que não entrava ninguém nesta casa!
     - Aquelas malditas mulheres! - disse indicando as traseiras da casa.
          - Ah, mas há mulheres a viver cá em casa?
      - Sim - disse, soltando um suspiro de exaustão. E completou:
         - Têm-me estragado a vida. Já não tenho forças para as deter. Nem forças nem vista, que estou a ver cada vez pior - desabafou, resignado.
       - Se me dá licença, vou ter que fazer uma vistoria à casa toda. E começo pelas traseiras.

         A Visita deixou o dono da Casa para trás. Aquela conversa pareceu demorar horas, tal o cansaço que deixou na Visita. Afastou-se convicto mas com algum receio do que iria encontrar. Voltou a passar pelo corredor dos retratos, atulhado dum lado e doutro. Reparou que não havia mulheres representadas. Passou adiante, percorreu outro corredor cheio de portas trancadas e coisas amontoadas junto às paredes, tudo coberto com lençóis. Chegou a uma porta larga.
           - Deve ser aqui - intuiu. Teve que remover um móvel que bloqueava a entrada e algumas tábuas pregadas a impedir a abertura.
          - O que está escondido, um dia tem de ser revelado - tentou convencer-se.
        - O que está escondido, quando trazido à luz do dia, pode fazer muitos estragos - respondeu-lhe a imaginação.
     As pancadas causaram o maior alvoroço dentro da biblioteca. A Visita engoliu em seco. Teve dificuldade em fazer com que as mãos obedecessem e deslocassem a porta de correr. Quando finalmente conseguiu, os olhos abriram de surpresa.
       - Meninas, temos visitas! - anunciou de viva voz uma mulher jovem, a recebê-lo de sorriso aberto. Mas não apareceu ninguém para além dela.
        - Sim, olá. A senhora é… - a Visita hesitou na pergunta. A roupa parecia tirada das revistas de moda de há duas décadas:
         - Vive nesta casa?
         - Vivo aqui. Mas não sou daqui.
         - Por que é que está aqui presa?
          - Toco piano. Quer ver? - sentou-se num belo piano de cauda, pôs as mãos em posição e olhou atentamente para a pauta de uma música infantil antiga. Mas em vez de começar, ficou estática, de mãos geladas e olhar petrificado. A Visita interrompeu-a:
          - Sente-se bem?
       - Acontece-me isto há trinta anos. Há dez mil seiscentos e cinquenta e três dias que me sento ao piano e as mãos ficam petrificadas.
         - E por que é que não desiste?
        - Não posso. Desde aquela audição que foi um desastre, fui fechada aqui dentro, para ser esquecida. Só serei liberta se o fracasso de que sou memória for aceite.
       - Se isso resolve alguma coisa, eu aceito-a como é.
      - Não, não. Eu pertenço ao coração de quem me gerou. Pertenço ao homem que vive nesta casa. Só posso ser liberta por ele.
      - E eu, que posso fazer?
    - Não sou a única. Este corredor está cheio de outras como eu. Todas fechadas à chave, para serem caladas e esquecidas. Umas, fruto de acontecimentos traumáticos, outras de situações embaraçosas, outras de fracassos. O homem começou por querer afastar algumas de nós, mas, como somos inseparáveis, acabou a rejeitar-nos a todas.
    - O problema - acrescentou - é que, assim como quis esquecer-nos, também acabou a perder tudo o que aconteceu no passado. Esqueceu-se até do que alguma de nós lhe lembrava constantemente: que era apenas hóspede desta Casa; que um dia acabariam os dias dele aqui. E, nesse dia, a bem ou a mal, seria obrigado a ver-nos a todas de novo. Agora, de cada vez que alguma de nós consegue sair do seu cubículo, o homem apanha um susto de morte. Treme por todos os lados, entra em convulsão e bate-nos como pode. Deixámos de poder falar com ele ou sequer vê-lo. E não foi só connosco. Também nos proibiu de estarmos com os que moram lá em cima.
      - Lá em cima? Há mais alguém a morar nesta Casa?
     - Sim, no pequeno salão-teatro, por cima desta biblioteca.
A Visita estava cada vez mais surpreendida.
     Começou por afastar obstáculos, retirar tábuas pregadas e forçar todas as portas daquele corredor. Detrás de cada uma, uma habitante diferente. Umas mais velhas, outras mais novas. Cada uma presa a um momento da história daquele pobre homem. Cada uma a repetir ininterruptamente esse momento. Cada uma a mostrar uma alegria incrível por ver a Visita, como se se tratasse de um velho conhecido, por muito tempo esperado.
    Só depois subiu as escadas para continuar a vistoria. Conforme se afastou, sentiu o burburinho de vozes femininas a aumentar de volume. Era dia de festa naquele corredor.
No cimo das escadas encontrou um menino. A parede e a porta do teatro pareciam especialmente estragadas pela humidade.
       - Olá! Quem és tu?

           - Eu pinto.
        A Visita aproximou-se para observar. Sentiu a nostalgia daqueles tempos de menino, sem preocupações.
         - Faço desenhos. Sou o melhor do mundo!
       - Parece-me é que gostas de assustar as pessoas que entram na tua casa pela janela!
        O Menino sorriu. Estava rodeado de lápis de cor, lápis de cera, marcadores. Ora pegava num, ora pegava noutro. Gesticulava, ensaiava traços, pontos, manchas. Mas as folhas continuavam brancas.
         - És o melhor do mundo em quê?
         O miúdo sorriu.
         - Não sei. A desenhar?
         - E porque é que não desenhas?
         - Não sei desenhar. Esqueci-me de como se desenha.
      De repente, o Menino que estava aparentemente tão bem disposto desatou a chorar. Eram lágrimas grossas. Abundantes e muito grossas. Parecia que uma barragem a transbordar de tristeza abrira as suas comportas. Num ápice molhou o tapete à volta e ficou uma mancha à volta do miúdo.
        - Não chores! Posso ensinar-te!
    - Sim. Já me ensinaram muitas vezes. Mas esqueço sempre - disse a soluçar.

            - Hum. Olha: e conheces outros meninos como tu?
            - Sim, estão aí dentro, no teatro.
          Como a porta estava trancada e não havia maneira de a abrir, a Visita empoleirou-se no buraco por onde a criança tinha saído e meteu-se lá para dentro.
         - As crianças são um espectáculo - tentou convencer-se.
         - As crianças são um espectáculo, mas um espectáculo triste - respondeu-lhe a imaginação.
      Lá dentro, o ambiente era indescritível. Um monte de crianças enchia aquele espaço como se fosse um jardim infantil. Uns corriam, outros saltavam, outros atiravam coisas, outros ficavam parados com algo que os entretinha. Ouvia-se um que gritava: eu sou um astronauta! Outro dizia: eu sou uma gaivota! Outro: eu sou o maior elefante do mundo!
      Sem se fazer notar, a Visita pôde assistir a um fenómeno estranho: uma primeira criança parara a chorar; a seguir, como um vírus contagioso, várias outras pararam, sentaram-se a soluçar e juntaram-se a ela; ao fim de pouco tempo, era um coro de choro estridente em uníssono. Eram lágrimas grossas. Abundantes e muito grossas. Não tardou até que aquela sala ficasse encharcada em lágrimas de criança. Nenhuma se lembrava de como fazer o que, momentos antes, gritava a pulmões cheios.
       Era tal a abundância de lágrimas que o tapete estava completamente empapado. E com o sol nascente, via-se uma cortina de vapor a elevar-se no ar. A Visita inclinou-se e viu como se acumulava em nuvem no tecto e saía pela janela. Lá fora, uma nuvem de lágrimas chegava a encobrir o telhado da casa e as copas das árvores mais próximas.
         - Isto não pode ser. Não pode.
      A Visita, desceu de onde estava empoleirada, e enfrentou a porta do salão-teatro, agora por dentro.
        - Afastem-se meninos.
     Pegou num machado e começou a desfazer a porta. A cada machadada, os miúdos saltavam e gritavam de alegria. Não tinha ainda terminado o seu trabalho e já um monte de crianças se precipitara pelas escadas abaixo.
       Foi com alguma expectativa que desceu ao piso inferior. Haveria ainda mais alguém naquela casa? Agora sim, percebia toda aquela humidade nas paredes e tectos. Agora sim, percebia que o homem da Casa sentisse a vida ameaçada. Havia segredos a mais. E os segredos estragam até as casas mais sólidas.
      Já no piso térreo, os seus olhos emudeceram de emoção. As Senhoras e os Meninos reencontravam-se e trocavam abraços e carinhos repletos de saudade. Uma coisa o apoquentava: faltava ainda justificar-se perante o homem da Casa.

         - Uma Casa cheia de luz não pode ter um habitante nas trevas - tentou convencer-se.
         - Um habitante nas trevas não pode ter uma Casa cheia de luz - respondeu-lhe a imaginação.
       A caminho da entrada principal, reparou que, no corredor, aparecera um novo quadro. Estacou diante dele e deteve o olhar. Ficou estupefacto. Baixou o olhar, meio atordoado, e viu um livro de capa dura. Na capa, bordado a dourado, dizia "Diário do Hóspede". Por dentro, aquele mesmo dia aparecia relatado, escrito e assinado pelo antigo dono da Casa. Terminava assim: "chegou o novo Hóspede. É tempo de partir".

          Passaram meses e meses. Estação atrás de estação. Ano após ano. Um dia, o Hóspede daquela Casa disse para si mesmo:
           - Parece que foi ontem que cheguei a esta casa!
          E, naquele momento, a campaínha tocou.
          - Quem é?
          - Sou eu.
          - O que deseja?
          - Mandaram-me vir com urgência e eu vim.

fim