quinta-feira, 23 de junho de 2016

PESQUISA DE ADELAIDE ABREU-DOS-SANTOS - OS OLHOS DA MATA

OS OLHOS DA MATA
Câmeras fotográficas espalhadas pela Mata Atlântica registram animais ameaçados de extinção vivendo em seu hábitat natural.
POR Camila Almeida


Jaguatirica: predador de topo de cadeia cada vez mais raro. Sua pele é valorizada no comércio ilegal e suas presas naturais, como roedores, também são alvo de caçadores.

Discreto e silencioso, em meio a uma robusta faixa de Mata Atlântica, o fotógrafo Luciano Candisani prepara sua emboscada. Quer capturar uma onça. Deitado entre folhas caídas, monta sua armadilha fotográfica. Para ter a chance de registrar um animal como esse, que figura lista de ameaçados de extinção, ele precisa percorrer uma longa estrada de terra, de curvas tortuosas que vão cortando a floresta. O caminho desce pela Serra do Mar, no estado de São Paulo, e nem está tão distante da cosmopolita capital. São cerca de 200 km de viagem até as trilhas por onde Candisani se espreita nessa caçada a animais selvagens, numa região conhecida como Vale do Ribeira.
A região, apesar de gerar pouco dinheiro para os cofres públicos (contribui com apenas 0,3% do Produto Interno Bruto de São Paulo), guarda a maior área contínua de Mata Atlântica preservada do país. São mais de 2 milhões de hectares de floresta, que equivalem a 21% de todos os remanescentes desse bioma. A alta probabilidade de encontrar fauna nativa foi o que motivou o Grupo Votorantim, dono de uma reserva privada no vale, a contratar um fotógrafo para registrar a diversidade presente na mata.

Onça-parda: estima-se que existam menos de mil onças-pardas na Mata Atlântica. As principais ameaças são expansão urbana e agropecuária, atropelamentos, caça e queimadas


Capturar esses bichos em imagens não é para qualquer profissional. Além de um olhar artístico, é preciso estudar os hábitos deles. Por isso, Candisani conta com a ajuda de um biólogo da reserva, que passeia de quatro pela trilha, tal qual um felino, enquanto ele ajusta o equipamento. Para montar a armadilha fotográfica perfeita, eles imitam o comportamento do animal, para tentar acertar o caminho que ele percorre na floresta.
É tudo uma questão de faro. Sabe como eles escolhem o lugar ideal para instalar as câmeras? Vestígios. A caçada inclui um processo prévio de mapeamento de marcas como arranhões nos troncos das árvores, pegadas no solo, fezes e até cheiro de urina. "Por isso, é fundamental contar com uma equipe de pesquisadores, que estudam a mata e sabem onde estão os indícios e que animais estão vivendo aqui", esclarece Candisani. Este acompanhamento é feito por uma equipe da ONG Pró-Carnívoros, que tem várias câmeras espalhadas pela reserva para levantar, avaliar e monitorar as populações de onças que vivem ali. Com esse mapeamento, será possível desenvolver um plano estratégico de preservação das espécies, o que garantirá a manutenção de todo o ecossistema.

ARMADILHA ESTRATÉGICA

NATUREZA BRUTA

O trabalho do fotógrafo Luciano Candisani não tem pretensão tão científica. Tem vocação mais artística. "Quero mostrar nestas imagens a naturalidade do animal em seu próprio hábitat, sem a interferência da presença humana", conta o fotógrafo. A armadilha dele conta com duas câmeras profissionais, com até quatro flashes cada. Um verdadeiro estúdio na floresta. "É preciso ter um cuidado com a luz, entender como ela entra na mata nos diversos horários do dia para conseguir regular as câmeras", explica. Elas conseguem registrar imagens com altíssima definição de manhã ou à noite.
ANTA

&


Anta albina: é o maior mamífero terrestre brasileiro. A gestação é longa (dura até 14 meses) e só gera um filhote. Por isso, este espécime albino raríssimo.


Depois de montadas, as câmeras precisam ser camufladas, para que os animais não as percebam e fujam. Elas são protegidas por uma caixa coberta com folhas e galhos. Os cabos do equipamento são enterrados, evitando o ataque de roedores. Sensores infravermelhos são os responsáveis pelos disparos. Quando o feixe de luz que corta a trilha é interrompido, por animais ou folhagens, as câmeras fotografam. Se o flash também dispara, os bichos percebem, por isso há algumas fotos deles encarando a câmera.
Até o momento, o fotógrafo conseguiu imagens de vários mamíferos diferentes, a maioria ameaçada de extinção. Já garantiu até jaguatirica e onça-parda, mas nada da pintada que estava buscando. Se depender do potencial da região, em breve ela deve aparecer. De acordo com o Instituto Socioambiental, ainda existe uma boa diversidade no Vale do Ribeira, inclusive mais de 40 espécies endêmicas, aquelas que são encontradas apenas em sua região de origem.


Irara: da mesma família da hiena, a irara é um mamífero com facilidade para escalar árvores. Adora comer mel, mas é também carnívoro e costuma caçar roedores.


A estratégia de montar armadilhas fotográficas para encontrar esses animais é relativamente nova. O primeiro trabalho global para o registro de mamíferos foi desenvolvido em 2011 pela Conservação Internacional e resultou em 52 mil fotos nas Américas, na África e na Ásia. O estudo conseguiu demonstrar como a destruição da floresta e a consequente perda de habitat para a expansão urbana e agropecuária impacta negativamente na sobrevivência das espécies e na diversidade da fauna mundial.

MATA VIVA, BICHO VIVO


Cachorro-vinagre: na lista de animais ameaçados há mais de dez anos. Na imagem, aparecem dois, o que sinaliza o comportamento de bando. No Cerrado, ele pode desaparecer em 100 anos.


A reserva privada, com 31 mil hectares de área preservada, existe há mais de 50 anos. E a presença de alguns desses animais na mata atesta seu bom estado de conservação. Um deles é o cachorro-vinagre, que precisa de condições muito específicas para se adaptar a um ambiente e é muito sensível a doenças. Se até ele, que é tão exigente, encontrou condições para sobreviver na mata, é sinal de que outros animais raros talvez estejam vivendo por lá também.
Na expectativa de encontrar onças-pintadas dentro da reserva, a Pró-Carnívoros intensificou suas buscas. Entretanto, o panorama não é tão animador: funcionários comentam que não veem uma onça-pintada há muito tempo. Mas a bióloga Sandra Cavalcanti, coordenadora do projeto, insiste na presença do animal - e não à toa. Já encontraram um bicho chamado queixada, tipo de porco-do-mato muito apreciado pelo felino. E, se tem comida, deve ter onça.
O esforço para conseguir preservá-la é uma estratégia fundamental para a saúde da floresta inteira. "Para manter a pintada, animal de topo de cadeia, a gente precisa preservar a cadeia alimentar inteira." Seguem buscando esses reis da fauna que, uma vez vivos, garantem a vida da nossa mata.


Luciano Candisani Fotógrafo
Luciano Candisani estudava para ser biólogo quando se apaixonou pela fotografia. Combinou as duas profissões. É especialista em fotos da natureza e já registrou da Amazônia à Antártida.
                        FIM