O PASSARINHO ENGAIOLADO
RUBEM ALVES
TEOLOGIA DO COTIDIANO, SP, OLHO D’ÁGUA, 1994
O passarinho engaiolado Dentro de uma linda
gaiola vivia um passarinho. De sua vida o mínimo que se poderia dizer era que
era segura e tranqüila, como seguras e tranqüilas são as vidas das pessoas bem
casadas e dos funcionários públicos.
Era monótona, é verdade. Mas a monotonia é
o preço que se paga pela segurança. Não há muito o que fazer dentro dos limites
de uma gaiola, seja ela feita com arames de ferro ou de deveres. Os sonhos
aparecem, mas logo morrem, por não haver espaço para baterem suas asas. Só fica
um grande buraco na alma, que cada um enche como pode. Assim, restava ao
passarinho ficar pulando de um poleiro para outro, comer, beber, dormir e
cantar. O seu canto era o aluguel que pagava ao seu dono pelo gozo da segurança
da gaiola.
Bem se lembrava do dia em que, enganado
pelo alpiste, entrou no alçapão. Alçapões são assim; têm sempre uma coisa
apetitosa dentro. Do alçapão para a gaiola o caminho foi curto, através da
Ponte dos Suspiros.
Há aquele famoso poema do Guerra Junqueiro,
sobre o melro, o pássaro das risadas de cristal. O velho cura, rancoroso,
encontrara seu ninho e prendera os seus filhotes na gaiola. A mãe, desesperada
com o destino dos filhos, e incapaz de abrir a portinha de ferro, lhes traz no
bico um galho de veneno. Meus filhos, a existência
é boa só quando é livre. A liberdade é a lei. Prende-se a asa, mas a alma
voa... Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!
É certo que a mãe do passarinho nunca lera
o poeta, pois o que ela disse ao seu filho foi: Finalmente minhas orações foram respondidas. Você esta seguro, pelo
resto de sua vida. Nada há a temer. Não é preciso se preocupar. Acostuma-se.
Cante bonito. Agora posso morrer em paz!
Do seu pequeno espaço ele olhava os outros
passarinhos. Os bem-te-vis, atrás dos bichinhos; os sanhaços, entrando mamões
adentro; os beija-flores, com seu mágico bater de asas; os urubus, nos seus
vôos tranqüilos da fundura do céu; as rolinhas, arrulhando, fazendo amor; as
pombas, voando como flechas. Ah! Os prudentes conselhos maternos não o
tranqüilizavam. Ele queria ser como os outros pássaros, livres... Ah! Se aquela
maldita porta se abrisse.
Pois não é que, para surpresa sua, um dia o
seu dono a esqueceu aberta? Ele poderia agora realizar todos os seus sonhos.
Estava livre, livre, livre!
Saiu. Voou para o galho mais próximo. Olhou
para baixo. Puxa! Como era alto. Sentiu um pouco de tontura. Estava acostumado
com o chão da gaiola, bem pertinho. Teve medo de cair. Agachou-se no galho, para
ter mais firmeza. Viu uma outra árvore mais distante. Teve vontade de ir até
lá. Perguntou-se se suas asas agüentariam. Elas não estavam acostumadas. O
melhor seria não abusar, logo no primeiro dia. Agarrou-se mais firmemente
ainda. Neste momento um insetinho passou voando bem na frente do seu bico.
Chegara a hora. Esticou o pescoço o mais que pôde, mas o insetinho não era
bobo. Sumiu mostrando a língua. – Ei,
você! – era uma passarinha. – Vamos voar juntos até o quintal do vizinho. Há
uma linda pimenteira, carregadinha de pimentas vermelhas. Deliciosas. Apenas é
preciso prestar atenção no gato, que anda por lá... Só o nome gato lhe deu um arrepio. Disse para a
passarinha que não gostava de pimentas. A passarinha procurou outro
companheiro. Ele preferiu ficar com fome. Chegou o fim da tarde e, com ele a
tristeza do crepúsculo. A noite se aproximava. Onde iria dormir? Lembrou-se do
prego amigo, na parede da cozinha, onde a sua gaiola ficava dependurada. Teve
saudades dele. Teria de dormir num galho de árvore, sem proteção. Gatos sobem
em árvores? Eles enxergam no escuro? E era preciso não esquecer os gambás. E
tinha de pensar nos meninos com seus estilingues, no dia seguinte.
Tremeu de medo. Nunca imaginara que a
liberdade fosse tão complicada. Somente podem gozar a liberdade aqueles que têm
coragem. Ele não tinha. Teve saudades da gaiola. Voltou. Felizmente a porta
ainda estava aberta.
Neste momento chegou o dono. Vendo a porta
aberta disse:
– Passarinho bobo. Não viu que a porta
estava aberta. Deve estar meio cego. Pois passarinho de verdade não fica em
gaiola. Gosta mesmo é de voar...