domingo, 7 de setembro de 2014

ADELAIDE ABREU-DOS-SANTOS - 4ª PARTE DA DANÇA

4ª PARTE DA HISTÓRIA DA DANÇA
A INVENÇÃO DA DANÇA CLÁSSICA


         A evolução da técnica da dança clássica foi de responsabilidade de um homem: Charles-Louis-Pierre de Beauchamps. O mestre de Beauchamps foi uma espécie de principal coreógrafo da França. Quase todas as grandes produções tiveram um toque seu, principalmente as da corte. Ele colocou em prática um "sistema de dança", que, de acordo com os ideais de Luís XIV, tendia à beleza das formas, à rigidez, ao virtuosismo, que valorizava a estética do corpo, demonstrando o quanto que a estética do movimento, naquela época, era mais importante que a emoção que o gerou. Assim, houve uma intensa profissionalização dos bailarinos e de outros profissionais ligados à dança.


    A técnica era quase tudo. Beauchamps, se apropriou dos passos do Ballet de Corte transformando-os, lapidando-os até chegar em produtos que são conhecidos atualmente: os entrechats (entrechatquatre, entrechatcinq, etc.), o grand-jeté, o pas de bourré. Além disso, ele também estabeleceu as 5 posições básicas, como formas de se aproximar ou afastar os pés numa distância proporcional e medida. Sua intenção era descobrir uma maneira certa para que o corpo do bailarino encontrasse sempre o seu eixo e o equilíbrio, estando ele dançando ou parado. Dessa forma, o mestre criou uma forma de se "escrever" o ballet, a partir da nomenclatura que deu aos passos formais de sua autoria.


       Um outro grande contribuidor da dança clássica foi Moliére. Primeiramente um produtor de espetáculos de teatro, Moliére adotou a dança em suas montagens e logo passou a criar suas conhecidas comédias-ballet, que eram, em sua essência, um Ballet de Corte com algumas novidades, mas que ainda usava récita de versos em sua trama. Uma das diferenças era o tema, pois Moliére rompeu com o tédio causado pela utilização da mitologia grega. Suas histórias eram uma pintura dos costumes, como as comédias que conhecemos atualmente. Na realidade, a maior inovação das comédias-ballet está na integração total da dança com a ação dramática. Se antes, nos Ballets de Corte, a dança servia para "enfeitar" o enredo, com Moliére a dança tem um porquê de estar no meio da ação. Em quase todas as obras, Jean Baptiste de Lully foi seu parceiro, e quando se separaram mais tarde, Lully produziu espetáculos que não passavam de remontagens de peças de Moliére e do Mestre de Beauchamps. Lully acabou realizando um movimento contrário ao da época, pois suas remontagens diminuíam a importância da dança em relação aos outros elementos do espetáculo. Assim, ele contribuiu com a longa sobrevivência do Ballet de Corte, onde a dança não era o principal elemento.

    Nessa mesma época, em meados do século XVII, surgiu uma outra figura importantíssima para a dança: a senhorita Lafontaine, conhecida como a primeira bailarina a dançar sozinha.

A EVOLUÇÃO NO SÉCULO XVIII
       Em 1713, foi fundada a escola de dança da Academia Real. Havia um regulamento que impunha que os diretores escolhessem os melhores súditos e ensinassem para eles gratuitamente sua técnica. Sem dúvida, a criação da escola colaborou para o aprimoramento técnico da dança, mas por outro lado contribuiu para a monotonia que foi gerada pelo apego ao movimento e o esquecimento da emoção que ele exprime. Havia uma rotina na escola que se fixava ainda mais no virtuosismo puro.
    Nessa época, surgiram estudiosos que desejavam escrever a dança. Eles criaram uma espécie de partitura, onde os nomes dos passos, símbolos e desenhos são escritos paralelamente às notas musicais. Nos livros onde foi "escrita" a dança, também foram catalogados novos passos: relevés, tombés, glissés, diversos tipos de pequenos saltos, cabrioles, coupé (que não era igual ao coupé de hoje) contratempos, chassés e sissones. Obviamente, o desenvolvimento da nomenclatura e da escrita da dança clássica facilitou o ensino e ampliou o aprendizado da dança. Mas os coreógrafos não adotaram a técnica da escrita, e por isso, ao contrário do que aconteceu com a música, não é possível reproduzir um ballet assim como ele foi concebido. Havia uma certa resistência à escrita: segundo um famoso maitre de ballet da época, "A coreografia escrita apaga a genialidade".

    Foi a partir desses pequenos avanços que surgiu a dança acadêmica, a técnica clássica definida, que é a mesma técnica que conhecemos hoje, apesar das mudanças e influências sofridas nesses dois séculos.

A ÓPERA-BALLET
Cenário de um ballet retratado em pintura

       Na primeira metade do século XVIII, entra em cena na França a ópera-ballet, que realizou o inverso dos ballets anteriores.  Nas comédias--ballet, a dança está a serviço do enredo, da música, e dos outros elementos. Já na ópera-ballet, todos os elementos estão subordinados à dança e servem para conduzi-la. Era praticamente uma peça inteiramente cantada e dançada. O enredo, porém, era extremamente fraco, não havendo uma trama ou história propriamente dita, com início, meio e fim. Personagens mitológicos voltaram a ser usados, porém viviam como se fossem mortais, quase sempre passando por aventuras amorosas.

 
    A ópera-ballet herdou dos ballets de côrte a cenografia e as vestimentas pouco adequadas. As roupas cobriam todo o corpo e inclusive o rosto: as máscaras eram amplamente utilizadas, de forma que não trabalhavam a expressão facial. O figurino era sempre pesado e incômodo, quase incompatível com a dança leve e elevada, mas, no entanto, a técnica era bem menos rigorosa que a atual.

  A expressão e valorização do rosto na dança atual são decorrentes dos ideais dos reformistas
        Em 1754, Luís de Cahusac foi o primeiro a criticar o excessivo apego à forma e não ao conteúdo da dança. Ele era um famoso libretista (que constrói o libreto, a história da peça), historiador, e, principalmente, crítico. Para ele, qualquer manifestação artística servia para imitar a vida real, e por isso a dança deveria ser uma forma de se expressar com o corpo as intempéries da alma.
    Franz van Weuwen Hilferding, um bailarino austríaco que estudou na França, se tornou maitre de ballet em Viena, Stuttgart, e São Petersburgo, onde produziu ballets repletos de ações, mímicas e mise-en-scenes. Mas esses ballets ainda não constituíam uma ação completa, eram um aglomerado de historietas que juntas não tinham sentido algum.


        O principal nome da reforma é Jean Georges Noverre. Conhecido por sua insatisfação com a dança e as regras de sua época, ele estudou dança mas não entrou na Academia Real, como ditavam as regras. Começou, então, a viajar de um lugar para outro, primeiramente como bailarino, e logo coreografando peças e espetáculos. Com 27 anos já era um maitre de ballet de renome, espalhando suas idéias inovadoras por onde passasse e influenciando toda a Europa. Dessa forma, depois de muito viajar por todo o continente, foi finalmente nomeado Maitre de Ballet da Academia Real de Paris (contra a vontade do corpo de baile e dos tradicionais, porque esses acreditavam que só alguém que já foi bailarino da Academia poderia ser maitre da academia). Lá, ele criou poucas peças em virtude da falta de apoio por parte dos bailarinos, mas talvez uma delas seja a mais inovadora de sua carreira: "lês Caprices de Galanthée", em 1781. Não continha canto, mas apenas danças e mise-em-scenes. Foi o primeiro ballet a romper definitivamente com o estilo das óperas. Noverre criou, assim, o ballet que girava em torno de uma só ação dramática, que contava uma história, síntese do Ballet de Repertório.


    O mestre acreditava que, antes de ser uma manifestação estética, a dança era uma forma de se exprimir emoções com o corpo. A estética do movimento era apenas uma consequência da emoção que brotava na alma do dançarino. Os bailarinos não poderiam deixar de lado a técnica, mas esta não era, de forma alguma, mais importante que a emoção que a dança busca exprimir.
    Noverre insistia muito no endehors, mas para ele nada deveria ser forçado: a abertura do quadril seria trabalhada através de exercícios como os rond de jambs e grand battements. Ele ainda criticava os bailarinos de sua época por trabalharem excessivamente o corpo e pouco a alma, tornando-se ignorantes na arte expressiva. Para ele, o bailarino deveria dividir seu tempo igualmente entre os estudos da arte dramática e as aulas para o corpo.

 

  Noverre criticou fortemente as vestimentas que cobriam os bailarinos: para ele, tudo deveria facilitar a técnica e principalmente a expressão no desenvolvimento da trama da história de cada ballet. Por isso, ele também retirou as máscaras de cena: "O rosto é o órgão da cena muda, é o intérprete fiel de todos os movimentos da Pantomima (dança expressiva), é o suficiente para banir as máscaras da dança".

       Em 1789, um discípulo de Noverre, Jean Dauberval, foi para Bordeaux, seguindo uma bailarina que amava, mas que não se dava bem com a direção da Ópera de Paris. Em Bordeaux, Dauberval criou La Fille Mal Gardée, o mais antigo ballet dançado até hoje. Quase nada de sua coreografia original foi mantida, mas sabe-se que era um ballet alegre e impregnado dos ideais da Revolução Francesa (*ver La Fille em Ballets de Repertório). Nasceram assim os Ballets de Repertório, que vêm sendo dançados e adaptados até hoje, e nos quais a ação dramática deve ter início, meio e fim, representados a partir de danças e mise- en-scenes. O mestre Noverre transformou o ballet clássico em uma dança que não se limitava a uma execução mecânica, que foi capaz de emocionar pessoas em todo o mundo nos séculos seguintes.
    
AGUARDE VAMOS CONTINUAR